Este é um blog sobre direitos animais e veganismo, abordados a partir da experiência de quem não sabia quase nada a respeito até o dia em que.

sábado, 17 de novembro de 2007

Abrace a Amazônia pelo fim do desmatamento















Enquanto o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) divulga seu quarto relatório, com notícias ainda piores sobre a velocidade das transformações climáticas causadas pelo aquecimento global, o Greenpeace Brasil promove uma ciberação de abraço virtual na Amazônia, com texto endereçado ao presidente Lula pedindo pela redução a zero do desmatamento até 2015. Basta entrar no site e se integrar à corrente.

Participe: http://www.greenpeace.org.br/desmatamentozero/

[ o site do IPCC você acessa aqui ]

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Assimetria

Acabo de ler o ótimo livro de Carlos Michelon Naconecy, Ética e Animais (EDIPUCRS, 2006), que tem como subtítulo "um guia de argumentação filosófica" e trata, basicamente, disso: elencar as justificativas mais comuns que sustentam o pensamento dominante de exploração dos animais e quais são os contra-argumentos éticos correspondentes, caso a caso. Uma rápida noção introdutória sobre ética (filosofia para não-filósofos e tipos de teorias éticas) abre o volume, e a descrição sucinta das principais vertentes da defesa dos animais o completa. Pena o autor não citar, nem como sugestão de leitura, os textos de Gary Francione, especialmente a crítica à abordagem bem-estarista que surge das brechas deixadas pelo utilitarismo de Peter Singer, mas esse assunto por si só – quem sabe? – pode render um outro livro inteiro.

Da leitura, feita num só fôlego, saí com a sensação muito concreta da enorme assimetria entre a defesa do direito ao bife e a defesa do direito do boi. Os argumentos colocados tão didaticamente lado a lado fazem a delícia de quem aprecia exercícios lógicos, mas fazem mais: redundam, por diversos caminhos, a divergência básica das motivações que estão por trás de uma e outra posição. A questão-chave colocada pelo ativismo dos direitos animais é bastante enxuta: a afirmação de que devemos incluir os animais não-humanos no círculo da comunidade moral atualmente contemplada pelas nossas preocupações éticas. Quem defende o direito ao bife responde a isso dizendo: "Não."

Claro, você sabe e eu sei que a maior parte das pessoas que defendem seu bife não se acredita deliberadamente vetando considerações de cunho ético sobre o boi. Talvez porque não haja consciência de que uma coisa está implicada na outra, e um bom exemplo recorrente é a revolta espontânea contra maus-tratos sofridos pelos animais. Recentemente a mídia nacional reproduziu a reportagem do Jornal do Almoço, um dos programas de TV mais antigos e mais vistos no Rio Grande do Sul, sobre as "corridas de bois de canga" na fazenda do pai do prefeito de Vale Verde, interior do estado. A começar pelas apresentadoras do programa, todos se mostraram "chocados" porque os bois (na verdade, touros), durante a competição em que ficavam presos à canga, além de tudo eram cutucados com uma vara que tinha pregos na ponta. A matéria da TV mostrou com nitidez um fiapo de sangue escorrendo do corpo de um deles. Bom, só de lembrar que a maioria dos gaúchos assistiu a essa reportagem enquanto almoçava provavelmente alguma comida à base de carne, é de causar espanto que alguém tenha se espantado... Um fio de sangue e o uso dos animais para jogatina são ocorrências mais que suficientes para condenar a todos os envolvidos nessa crueldade, mas de onde vem e por qual processo as pessoas imaginam que o bife se materializa nos seus pratos?

Não precisamos de varas com pregos, o bife cotidiano já é a negação do visto de entrada do boi na comunidade moral; a partir disso, qualquer consternação pelos maus-tratos sofridos pelo animal vai ser necessariamente fruto de ignorância, incoerência ou cinismo. Diz Naconecy:

"Nós pressentimos os inconvenientes que uma ética para os animais traria para nossos interesses, uma vez que, obviamente, os interesses dos membros de qualquer grupo são mais bem atendidos mantendo o tamanho desse grupo reduzido."

O autor segue citando Dale Jamieson:

"Quanto maior for a participação na comunidade dos iguais, menores serão os benefícios que recebem seus membros. Essa é, em parte, a razão pela qual tem havido uma resistência histórica à ampliação do círculo da preocupação moral. As elites da sociedade têm resistido à reclamação de igualdade por parte das classes inferiores; os homens têm resistido às reclamações das mulheres, e os brancos têm oferecido resistência às reivindicações dos negros. A perda de vantagens injustas é parte do custo da vida em uma sociedade moralmente bem-ordenada, mas é típico que os que têm que pagar por esse custo tratem de evitá-lo."

Eis a assimetria: os discursos da defesa do bife e da defesa do boi falam fundamentalmente sobre como devemos nos comportar, mas enquanto a motivação deste último se baseia na ampliação da visão que passa a enxergar no boi um Outro, os que defendem seu bife estão apenas fazendo isso mesmo: tratando de garantir "o seu", não importa o quanto levantem as sobrancelhas diante de uma matéria chocante na TV em plena hora do almoço.

[ a imagem que ilustra o post foi retirada da matéria do Jornal do Almoço, que você pode conferir aqui; a citação de Naconecy está na página 67, onde também está o trecho de Jamieson citado pelo autor (que você pode ler, na íntegra e em inglês, aqui) ]

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Deslocar para não sair do lugar


Recebi um e-mail da Lut repassando a notícia de que um artista plástico costa-riquenho apresentou o seguinte trabalho numa exposição: um cão de rua, esquálido e doente, foi amarrado num canto da galeria e ali ficou, sem que lhe dessem água nem comida, até morrer. Em seguida se conta que esse mesmo artista foi um dos escolhidos para representar seu país na Bienal Centroamericana Honduras 2008, e se conclama o leitor a assinar uma petição pelo boicote à sua presença no evento.

Fui checar a informação na Internet e há de fato muito material sobre o assunto, diversos blogs comentado o caso e, claro, com as pessoas reagindo indignadamente. Com toda razão.


A exposição ocorreu em Manágua, e a matéria de 4 de outubro do jornal La Nación, da Costa Rica, conta como foi. Transcrevo abaixo algumas partes:

"El artista costarricense Guillermo Vargas, más conocido como Habacuc , está envuelto en una gran polémica debido a la muerte de un perro callejero dentro de Exposición N° 1 , muestra que se realizó en agosto pasado en Managua (Nicaragua). [...]
Como parte de su exposición, el artista enfrentó al espectador a un perro callejero flaco, enfermo y con hambre amarrado a la esquina de la sala. Él capturó al animal en un barrio pobre de Managua. El perro murió tras un día en la exposición [...]. La muestra también incluyó la frase, escrita con alimento de perro, 'Eres lo que lees' [...]"

O artista, que deu ao cão o nome de Natividad, disse que o trabalho era uma homenagem a Natividad Canda, nicaragüense que morreu após ter sido atacado por dois cães rottweiler. Segue a matéria:

"'Me reservo decir si es cierto o no que el perro murió. Lo importante para mí era la hipocresía de la gente: un animal así se convierte en foco de atención cuando lo pongo en un lugar blanco donde la gente va a ver arte pero no cuando está en la calle muerto de hambre. Igual pasó con Natividad Canda, la gente se sensibilizó con él hasta que se lo comieron los perros', explicó .

Incluso agregó: 'Nadie llegó a liberar al perro ni le dio comida o llamó a la policía. Nadie hizo nada'.

Al ser cuestionado acerca de si alimentó al animal o no, el artista se negó a responder.¿Por qué no usó otro medio de expresión? 'Recojo lo que miro... El perro está más vivo que nunca porque sigue dando qué hablar', dijo."

São Francisquinho de Assis, valei-nos!

Tomado como obra artística, esse exercício de crueldade é fraco "do primeiro ao quinto", numa expressão antiga que meu pai gostava de usar. Quase não há o que falar a respeito, mas para não passar batido quero apontar apenas a falha óbvia: o artista pretende denunciar a hipocrisia do público que só "vê" o cão quando este está deslocado da rua, mas para efetivar sua denúncia tem de incorrer em hipocrisia igual ou pior: acaso ele vê o cão de maneira tão distinta assim? Ele se exime de dizer se a sua atitude de deixar o cão à morte é certa ou errada, mas propõe que o público seja julgado. Mas de onde, de que planeta esse sujeito está falando? Quem ele pensa que é? Apesar de se acreditar diferente "de la gente", já que ungido de justificativa artística, o discurso pretendido só faz desmoronar sobre si mesmo. Não há crítica nem julgamento, o que há é redundância, uma oitava acima. Ele vai em busca do desgraçado num bairro pobre de Manágua (onde para capturá-lo contou com a ajuda de cinco meninos, a quem deu um troquinho), e desde antes está prevendo o próprio trabalho, a instalação na galeria, como será a reação das pessoas, etc. Vê tudo no processo, menos o cão. Argumentar que ninguém fez nada para tirar o animal daquela situação é de uma falta de preparo intelectual que denuncia o artista sem estofo, e de um cinismo que só esclarece o ser humano profundamente perdido em autocentramento. O cão não está mais vivo agora porque segue dando o que falar, é o contrário: falam dele agora justamente porque está morto. Quem parece estar "mais vivo" depois disso é o assassino.


De resto, galerias e vernissages à parte, o que sobra é bem simples: a energia gasta para achar e capturar o cão adoentado e faminto poderia ter sido usada para tentar encontrar uma melhor condição de vida para ele. Até a indiferença mais brutal teria sido menos danosa do que o olhar arrogante que identificou naquele ser um objeto útil para um fim alheio e contrário ao seu mais básico e legítimo interesse: viver.

O que seria, realmente, ver o cão?

Do ponto de vista antiespecista, toda a crueldade cometida contra o pobre cão tem como gerador o fato de ter sido tratado como objeto passível de ter dono. Por não ter dono foi livremente capturado das ruas, e então por ter dono deixaram que ficasse à mercê da vontade deste, esperando a morte numa galeria de arte. Todas as outras discussões são acessórias a esse fato central.

É a crueldade "desnecessária" do artista infeliz para com o cão que detona nossa indignação instantânea, mas não faltam crueldades equivalentes contra animais não-humanos embutidas nas nossas atividades humanas mais cotidianas. Se é possível discutir a partir desse episódio triste algo como "o que é arte" e qual deve ser o limite dessa atividade humana tão nobre, devemos lembrar que também é possível discutir "o que são as necessidades humanas" de companhia, alimentação, vestuário, entretenimento, pesquisa científica, etc.

Sabemos todos, ainda que instintivamente, que não há atividade humana, por mais nobre, que prescinda de um comportamento humanamente responsável.

Respondi ao e-mail da Lut dizendo a ela (pela centésima vez) uma citação de Clarice Lispector: "Quanto a escrever, mais vale um cachorro vivo."

[ as fotos foram tiradas de um blog que documenta a exposição, que você vê aqui; a matéria do jornal La Nación você lê aqui; a petição para o boicote à participação do artista na Bienal Centroamericana Honduras 2008 pode ser assinada aqui ]

sábado, 20 de outubro de 2007

Palavras de centauro

Medéia, filme de Pier Paolo Pasolini de 1969, fala da sobrevivência de aspectos bárbaros no mundo civilizado, e as conseqüentes tensões disso. Pasolini afirmava que "barbárie" era a palavra que mais amava, e o sentido aqui para o termo é o da percepção mágica da natureza, primitiva e pré-civilizada, em contraposição ao pragmatismo burguês da sociedade de consumo. Sobre o filme, diz:

"Medéia é a confrontação do universo arcaico, hierático, clerical com o mundo de Jasão, mundo ao contrário racional e pragmático. Jasão é o herói atual (a mens momentanea) que não somente perdeu o sentido metafísico como nem mais se coloca questões dessa ordem. É o 'técnico' abúlico, cuja procura é unicamente dirigida para o sucesso."

Há duas seqüências primorosas em que o sábio Quíron (no mito original e na peça de Eurípedes, mas apenas "o centauro" no filme) fala sobre o passado pré-civilizado e a herança deixada por ele. Na primeira, enquanto Jasão cresce sob a proteção do centauro, este lhe diz:

— Tudo é santo, tudo é santo, tudo é santo. Não há nada de natural na natureza, meu rapaz. Guarde isto na memória: quando a natureza parecer natural a você, tudo terá acabado, e começará uma outra coisa.

Jasão se torna adulto e deve retomar o reino que foi usurpado de seu pai por seu tio, mas para isso este lhe impõe o cumprimento de algumas tarefas, entre as quais recuperar o velocino de ouro. Na busca pelo velocino numa terra bárbara e distante encontra Medéia, que, além de ajudá-lo na tarefa, deixa seu mundo pré-civilizado por amor a ele. Os dois ficam juntos e seguem para Corinto, mas a certa altura ele está prestes a abandoná-la para ficar com Gláucia, filha do rei, Creonte. Nesse momento reencontra o centauro, e o diálogo dessa segunda seqüência é:

— Jasão!
— Como veio parar aqui? Como veio parar aqui?
— Voce quer dizer como viemos parar aqui.

Na verdade o centauro se apresenta duplicado, na sua forma original (meio homem, meio cavalo) e na forma humana, civilizada. Ao perceber isso, Jasão diz:

— Mas é uma visão!

Ao que o centauro humanizado responde:

— Se for, é você que a está produzindo. De fato, nós dois estamos dentro de você.
— Mas eu conheci um só centauro.
— Não, você conheceu dois: um sagrado, quando você era criança, e um profano, quando você se tornou adulto. Mas tudo que é sagrado permanece junto à sua nova forma profana. E aqui estamos nós, um ao lado do outro.
— Mas qual é a função do velho centauro, aquele que conheci quando menino e que você, novo centauro – se bem compreendi – substituiu não fazendo-o desaparecer, mas tomando o lugar dele?
— Ele, naturalmente, não fala, porque a sua lógica é tão diferente da nossa que não se poderia entender. Mas eu posso falar por ele. É sob o signo dele que você, para além de seus cálculos e de sua interpretação, na verdade ama Medéia.
— Eu amo Medéia...?
— Sim. E não tem piedade dela, que compreende sua catástrofe espiritual, sua desorientação de mulher antiga num mundo que ignora tudo aquilo em que ela sempre acreditou. A pobrezinha passou por uma conversão ao contrário, e nunca mais foi como antes.
— E de que me serve saber disso tudo?
— De nada. É a realidade.
— E você, por que razão me diz isso?
— Porque nada poderia impedir ao velho centauro de inspirar sentimentos. E a mim, novo centauro, de expressá-los.

Apesar de perturbado pelo encontro, Jasão dá seguimento a seus planos de casar com a filha do rei e a tragédia se consuma. Medéia em fúria causa a morte de Gláucia, de Creonte e dos dois filhos que tivera com Jasão.

Pasolini já falava nessa época do ritmo acelerado com que o Terceiro Mundo (e o que havia sobrado de "camponês" na Europa) se encaminhava para o neocapitalismo. Havia chegado a era do triunfo da lógica do consumo e do bem-estar, e o decorrente abandono de um sentido de sagrado cuja linguagem não dominamos mais. Um velho centauro para nós agora mudo, mas justaposto a um novo centauro que – felizmente – fala a nossa língua.


[ Medéia foi lançado em DVD no Brasil pela Versátil Home Vídeo, e a imagem que ilustra o post é a cena em que o centauro aparece duplicado a Jasão; a citação em que Pasolini comenta o filme foi retirada da página 119 de As últimas palavras do herege: entrevistas com Jean Duflot, editado pela Brasiliense em 1983 ]

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

Feitiços e feiticeiros

Deu na Época on-line: as plantações argentinas de soja transgênica estão sendo atacadas por uma erva daninha que consegue resistir ao herbicida usado, o glifosato. A soja plantada foi geneticamente modificada para resistir ao glifosato, que uma vez aplicado passaria então a eliminar as outras espécies que competem com ela, aumentando a produtividade por hectare. Talvez o gene resistente ao herbicida tenha migrado da soja para a erva daninha, ou talvez esta tenha apenas naturalmente se adaptado a ele, mas o fato irônico é que agora:

“A propagação dessa erva daninha resistente poderá aumentar os custos de produção agrícola na Argentina entre US$ 160 milhões e US$ 950 milhões por ano [...]. Combater a praga exigirá o uso de 25 milhões de litros de outro herbicida todos os anos.”

Ou seja, o lucro almejado virou despesa extra compulsória. Na Argentina, 98% das plantações de soja são de sementes transgênicas desenvolvidas pela Monsanto.

[ a matéria você lê aqui ]

sábado, 29 de setembro de 2007

Aula de matemática e de...






Crescimento da produção anual mundial:

carnes
  • 1999/2001 = 229 milhões de toneladas;
  • 2050 = 465 milhões de toneladas.
laticínios
  • 1999/2001 = 580 milhões de toneladas;
  • 2050 = 1 bilhão e 43 milhões de toneladas.








Ocupação da terra:
  • 30% da superfície terrestre estão destinados à criação de gado (principalmente pastagens);
  • 33% da superfície cultivável estão destinados ao cultivo de forragem;
  • 70% do desflorestamento amazônico devem-se à criação de áreas de pastagem.








A pecuária é responsável por:
  • 9% das emissões de CO2 procedentes de atividade humana;
  • 65% das emissões de óxido nitroso (que no efeito estufa é 296 vezes mais danoso do que o CO2);
  • 37% das emissões de metano (que no efeito estufa é 23 vezes mais danoso do que o CO2);
  • 64% do amoníaco (que contribui com a formação de chuva ácida).







  • 20% da biomassa animal terrestre são constituídos de animais de criação (carne e leite). O impacto da ocupação de terra destinada ao gado e cultivo de forragem é responsável direto pela perda de biodiversidade em 24 ecossistemas importantes, dos quais 15 já se encontram ameaçados.







  • A atividade pecuária contribui mais com o aumento do efeito estufa do que a emissão de poluentes dos meios de transporte.



[ dados da FAO (Food and Agriculture Organization), das Nações Unidas, cujo relatório é tema da matéria "Pecuária é séria ameaça ao meio ambiente", que você lê aqui (em inglês) e aqui (em espanhol). O documento completo, "Livestock's long shadow", você encontra aqui ]

sábado, 22 de setembro de 2007

Ver para crer

"Imagem divulgada pela Nasa mostra que o degelo do oceano Ártico quebrou todos os recordes e encolheu neste ano mais de 1 milhão de quilômetros quadrados." (UOL, 22/09/2007)












[ foto: Reuters/Nasa ]

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

O prazer da carne

Está na Wikipédia: "Na psicanálise de Sigmund Freud, o princípio de prazer é o desejo de gratificação imediata. Tal desejo conduz o indivíduo a buscar o prazer e evitar a dor. O princípio de prazer opõe-se ao princípio de realidade, o qual caracteriza-se pelo adiamento da gratificação. Faz parte do amadurecimento normal do indivíduo aprender a suportar a dor e adiar a gratificação. Ao fazer isso o indivíduo passa a reger-se menos pelo princípio de prazer e mais pelo princípio de realidade."

Com Freud abrindo o post, não há como não acabar falando em sexo: puro sexo instintivo, bem básico, bem natural, descomplicado e gostosamente burro, sexo selvagem, sexo como princípio-de-tudo e onde tudo-é-permitido.

Mas isso existe?

Eu não conheço, e duvido que você conheça. Tem assim de vez em quando uns fiapos, uns ecos distantes de alguma coisa antiga, ancestral, uma pulsação nos conectando diretamente com o primeiro hominídeo bípede, ou mesmo com nosso primeiro parente sexuado. Mas isso são resquícios, ilhotas primitivas que afloram num oceano de conceituações e, inevitavelmente, problematizações. Veja só, logo o sexo, o prazer mais fundamental, tão sujeito a complicações. O básico dos básicos vira arena para todo tipo de questionamentos, hierarquias, legislações e, claro, moralidades.

Aí eu pergunto: o que você acha da prostituição infantil no litoral nordestino? Antes de fechar a questão com uma exclamação indignada, pense bem no atrativo turístico desse mercado, nas divisas em dólar e euro deixadas no comércio local, no sustento dos empregos nas companhias de aviação, agências de viagem, restaurantes, etc., etc., etc. Pense também no prazer indubitável do gringo americano ou europeu alucinado pela brasileirinha de 12 anos: como, afinal, condená-lo?

Hein? Tô falando em pedofilia? Tô defendendo a pedofilia?

Defendendo, não, mas falando, sim. A palvra vem do grego paidophilia, uma junção de "criança" e "amizade" (nesse caso, atração por). Os mesmos gregos antigos que, ao contrário da crença generalizada, não eram a favor da homossexualidade entre parceiros da mesma faixa etária, mas tinham, isso sim, em grande conta pedagógica a convivência homoerótica masculina entre um adulto (erastes) e um menino pré-púbere (eromenos). Altamente hierarquizada e protocolar, a relação entre o rapazinho e seu amigo adulto os mantinha ligados até que o buço surgisse naquele, quando as primeiras manifestações do corpo de homem faziam com que ele deixasse de ser desejável aos olhos do mais velho. Mas antes disso, muita conversa, jogos, educação política e filosófica e, last but not least, coito intercrural, que ninguém é de ferro. Com a chegada da barba, era a vez do eromenos se transformar em erastes e buscar para si um jovenzinho atraente. Era assim entre os cidadãos livres: o erastes obtinha gratificação erótica na beleza e juventude florescente do eromenos, para quem era uma honra despertar o interesse do homem mais velho, significando a garantia da educação mais completa que se podia ter então.
O incrível é que os gregos forneceram a base sobre a qual os romanos construíram, entre tantas coisas, a sua legislação, a noção de justiça e legalidade da qual somos herdeiros diretos, e que usamos hoje para colocar atrás das grades qualquer adulto que se atreva a ter contato sexual com menores. Os gregos também nos legaram os fundamentos da medicina ocidental, e hoje a pedofilia é item do CID (Catálogo Internacional de Doenças, da Organização Mundial de Saúde). É provável que Platão se escandalizasse ao ver o turista assediando a menina no calçadão da praia, mas certamente devido ao fato de se tratar de uma menina. Fosse um moleque, à chegada da polícia e diante da cena do gringo algemado, Platão diria em bom dialeto ático: "Ué, gente, o que é que tem de mais?"

Mas este mundo dá voltas, não?

Falando a partir do ponto de vista do sujeito ativo da ação, pessoalmente não tenho a menor atração por coisas e pessoas infantis, mas mesmo assim devo entender que um homem adulto pode se sentir internamente justificado a ponto de cruzar o oceano e se arriscar a ser preso, pouco importando se damos ou não a isso o nome de doença e crime. É o princípio de prazer gritando dentro dele, e o erro fundamental aqui é ter nascido na época e/ou sociedade errada. Outro tempo e outro lugar, crime e doença desapareceriam como que por encanto, e nem precisava ser na Grécia clássica: pouco mais de cem anos atrás, um senhor branco fazia o que queria com a menina escrava sob inteira tutela da lei, e longe da esfera da doença (pelo contrário: o defloramento de negrinhas virgens era tido como remédio certeiro contra a sífilis). Agora, lembrando que existe a outra ponta que é vítima dessa ação, eu continuo entendendo que esse homem tem seu desejo, mas no que depender de mim ele não terá a mínima chance de fazer qualquer coisa com qualquer menor de idade. Por maiores que sejam os benefícios colaterais em dólar ou euro, sabemos que a menina tem de estar em outro lugar que não as calçadas da prostituição, e ponto. Isso está baseado no que entendemos hoje por direitos da infância e deveres dos adultos. É o princípio de realidade do nosso aqui e agora.

Pra quem gosta de explicações naturalistas para os comportamentos, aproveito para lembrar que entre os golfinhos, nossos parentes inteligentíssimos e de organização social complexa, é comum que indivíduos adultos se masturbem usando o corpo dos mais jovens. Ahá! Quem sabe aqueles gregos sofisticados esfregando os genitais entre as coxas dos meninos não estavam simplesmente dando vazão a um imperativo biológico absolutamente natural?

Não, claro que não. Sexo totalmente burro, de pura corporalidade e isento de conceitualizações já devia ser uma impossibilidade para os pintores de Lascaux, que dirá para os contemporâneos de Platão. Moral da história: os prazeres que buscamos permanentemente nas ações da nossa vida diária nunca são assim tão simples, muito menos naturais e justificáveis apenas "porque sim". Ainda que de vez em quando alguma ilhota de pura fruição primitiva nos lembre de uma ancestralidade não-conceitual, todo o resto é negociação permanente entre os princípios de prazer e realidade, como nos ensina Freud.
Então, da próxima vez que em resposta à evidência do abatedouro você justificar o bife no prato simplesmente "porque dá prazer", lembre dos gregos antigos, dos golfinhos e dos pedófilos. Trate de colocar em perspectiva prazeres e realidades de uma maneira que contemple todos os termos dessa equação. Lembre da vaca. E da menina prostituída no calçadão à beira-mar também.

[ a ilustração é um detalhe de uma figura vermelha ática, c. 530-430 A.C., acervo do Ashmolean Museum, University of Oxford; para saber mais sobre práticas homossexuais gregas, leia A homossexualidade na Grécia antiga, de K. J. Dover, editado pela Nova Alexandria ]

terça-feira, 18 de setembro de 2007

O difícil é muito fácil

O mundo está entupido de produtos de origem animal, nos quais se baseia grande parte do comércio, da indústria, da moda, dos cardápios e dos costumes. São aqueles velhos hábitos na hora de comer, de vestir e, principalmente, na hora de pensar. Aí chega uma informação, uma notícia, um susto – aqui poderiam entrar dezenas de exemplos, mas vou resumir dizendo simplesmente: a certeza de que alguma coisa muito feia, injusta e eticamente condenável acontece aos animais não-humanos para que se sustentem os nossos velhos hábitos de animais humanos. Pode ser o couro da sandalinha hippie ou do estofamento daquele carro "sonho de consumo"; o tapete de ovelha ou a gola de pele no casaquinho de grife; o leite dentro do chocolate ou o queijo importado só para connaisseurs; o xampu em embalagem promocional de meio litro ou o item de maquiagem que custa três dígitos, enfim, não importa se o horror vem embutido no dog com duas salsichas ali da esquina ou se manifesta na carne de javali daquela churrascaria caríssima, o fato é que estamos cercados. Chega a informação da crueldade cometida e imediatamente nos damos conta do quanto estamos dependentes dela. Que difícil.

A negação do aspecto cruel através da objetificação absoluta dos animais (são apenas "coisas") é uma das possibilidades de superação da dificuldade desse cenário, mas poucos entre nós de fato apelam para isso. Por "nós" eu quero me referir aqui aos que temos acesso à Internet e visitamos blogs, é claro. Pois bem, nós costumamos ir um pouco além dessa negação, pois sabemos que animais não são coisas, e nós amamos os animais. Nós somos contra os maus-tratos ao leão de cirquinho pobre do interior. Nós não gostamos de rodeio. Nós achamos cafona quem usa casaco de pele. Nós lemos. Nós sabemos a diferença entre Renascimento e Barroco. Nós fazemos terapia. Nós somos sensíveis, inteligentes, críticos. Um degrau acima dos instintos básicos de quem simplesmente curte a apresentação patética do leão maltratado no circo, temos a tarefa bizarra de compatibilizar a responsabilidade pela crueldade indesculpável com os prazeres resultantes dela. E isso apenas para que as coisas fiquem do jeito que estão. Com uma incrível complexidade lançamos mão de toda a arte e toda a ciência para justificarmos simultaneamente nossa crítica à tourada e nosso elogio ao boi na churrasqueira. Isso sim é que é difícil, e acaba se tornando uma verdadeira acrobacia ética, cujos movimentos desenham o que Gary Francione bem definiu como "esquizofrenia moral".
Uma vez que tenhamos algum entendimento do outro e alguma noção de responsabilidade, o dispêndio de energia para manter os velhos hábitos no lugar de sempre a despeito das evidências em contrário vai ficando cada vez maior. Permanecer no mesmo ponto significa continuarmos a depender de práticas cruéis cujos responsáveis somos nós, e essa é realmente uma situação difícil.

Pois então é muito fácil: basta sairmos de onde sempre estivemos.

[ textos de Gary Francione em que ele fala de esquizofrenia moral, você lê aqui, aqui e aqui (em inglês) ]

domingo, 2 de setembro de 2007

Em defesa da vaca e de todos nós

Pieter Bruegel, o Velho. Cego guiando cegos. 1568.

Este post é uma resposta ao texto publicado na coluna de David Coimbra em 31 de agosto de 2007, no jornal Zero Hora, intitulado "Em defesa da vaca" [que você pode ler aqui ].

Prezado David, mal te conheço. Não sou leitor de Zero Hora, então não acompanho tua coluna. Te vi uma vez ou duas no Café TVCOM e já ouvi teu nome por aí algumas vezes, o suficiente para que eu saiba quem és, mesmo não conhecendo tua escrita. Ontem recebi um e-mail com dois textos rebatendo o que escreveste na última sexta-feira. Entrei no site da RBS e fui atrás da tua coluna. "Em defesa da vaca" é o título. Pois olha, embora já soubesse mais ou menos do que se tratava através dos textos que recebi por e-mail, fiquei muito impressionado com a tua crônica. Eu não entendi, David. Quer dizer, entendo como funciona a lógica de quem não enxerga na questão dos direitos animais qualquer importância. Para alguns nem mesmo de uma questão se trata. Já para mim (e para os castradores de gatos e vegetarianas a que te referes) sim, é um questão e é das mais importantes, mas não te escrevo para debater sobre isso. Te escrevo porque, como disse, não entendi o ponto exato da tua crônica. Não entendi tua motivação, onde colocaste o teu olho de cronista. Não entendi teu humor. Mas entendo que a beleza da crônica, esse gênero tão difícil porque tão cotidiano, tão de pertinho, está justamente no desafio a essa simplicidade. Mesmo sobre o assunto mais banal, o cronista é o sujeito que nos leva junto com ele, nos desloca para que olhemos as velhas coisas com alguma renovação de sentido. O já sabido vira outra coisa, às vezes mais humorada, às vezes mais triste, mais surpreendente, o que seja: o já sabido vira coisa nova em folha porque o cronista nos dá de presente um olhar que acabou também de surgir, em pleno ato da leitura.

"Em defesa da vaca" me deu a sensação oposta. Me senti sem ar, envelhecido, triste. O teu olhar de cronista me levou para um lugar conhecido e francamente desinteressante. Sem trocadilhos, um lugar-comum, e não entendi a tua motivação de levar o leitor justo pra esse lugar, não vi graça nenhuma nisso. Sabe por quê, David? Porque a tentativa de humor que há no teu texto está baseada em ignorância. Falas de uma vaca clichê, uma galinha clichê e as tuas considerações sobre "as vegetarianas" e os "castradores de gatos" também são clichê. Falas sobre esse animais e esses humanos como se estivesses num lugar muito distante deles. Como aquele sujeito que ri apontando para o outro, e nunca com o outro. Esse humor grosseiro é comum, óbvio, tem sempre um sujeito assim ali na esquina. A gente não precisa abrir o jornal para encontrá-lo. Deixa eu te lembrar de uma coisa: o pessoal, por exemplo, que se manifestou contrariamente à Expointer certamente já comeu churrasco algum dia. Já comprou um casaco de couro e, quem sabe, é provável mesmo que a gente encontre ali alguém que já achou que estava muito distante dos vegetarianos castradores de gatos. Igualzinho a ti. Mas alguma coisa aconteceu e essa gente hoje protesta em defesa dos direitos animais. Isso não te desperta o mínimo de curiosidade? E tem gente de todo tipo, toda idade, toda inclinação política, toda formação. Uma pergunta, uma consulta ao Google ou à prateleira de qualquer livraria e já saberias da dimensão do que estou falando. Mas, de repente, ficam todos apequenados no teu texto, cabem todos miniaturizados dentro do clichê que escolheste. Essa gente, David, entendeu que num mundo em que convivem vacas, galinhas e humanos tudo é, necessariamente, perto, e há sim inúmeras questões importantes a resolver. O lugar distante em que te acreditas e de onde falas serve, na verdade, pra muito pouca coisa, e é certamente perigoso para um jornalista estar. Para um cronista, então, há de ser o pior lugar do mundo.

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Crianças e crianças

Meu pai foi criança nos anos 1930, em Rio Grande, no interior do Rio Grande do Sul. Ele contava uma história que ilustra bem a época e o que era ser criança então. Um dia, na casa de uma tia, lhe foi ordenado que fosse até o quintal e matasse uma galinha para o almoço. Ele foi, pegou a pobre pelo pescoço e a girou no ar, em vez de rapidamente desnucá-la. A galinha, claro, não morreu, para extrema aflição dele, e saiu correndo tonta até ser pega pela tia e, aí sim, finalmente morta.
Eu fui criança nos anos 1970, em Porto Alegre. Lembro de assistir uma vez à preparação de uma galinha ao molho pardo, prato de que gostava. Não vi a galinha ser morta, mas presenciei o ritual de deixá-la pendurada de cabeça para baixo, a garganta aberta, sobre uma bacia que recolhia o seu sangue. Depois disso nunca mais voltei a comer galinha ao molho pardo.

Os quintais hoje (quando há quintal) não têm mais galinheiro e nem as galinhas são trazidas vivas para serem abatidas em casa. Ninguém imagina submeter uma criança a ter que matar um animal e comê-lo depois no almoço, nem acha razoável que assista aos procedimentos sanguinolentos que alguns pratos exigem. É trauma certo para a criancinha, sem dúvida. Estou falando obviamente do contexto urbano; os camponeses têm outro tipo de vida.
Pois o trauma infantil seguramente não era uma preocupação nos anos 1930 e, embora fosse o último grito da psicopedagogia moderninha, nos anos 1970 ainda se supunha razoável deixar uma galinha pingando sangue à vista de todos, inclusive crianças. Mas e hoje?

Hoje vamos ao supermercado e galinha é coisa morta, limpa e devidamente empacotada em partes, assim como o boi, o porco ou qualquer outro animal que se julgue comestível. Fora isso, frango é nugget, boi é steak e porco é bacon, presunto, salsicha. Para cada bicho, zilhões de variadas apresentações, cortes, embutidos, embalagens. Só somos lembrados de como são os animais reais através de uma iconografia infantilóide, como o Franguinho da Sadia que ilustra o início desta postagem: ai, que bonitinho! E dá-lhe vaquinha, porquinho, fazendinha...
Dessa maneira vivemos e passamos adiante para as crianças um mundo do alimento de origem animal cheio de diminutivos felizes, cenários felizes, bichos felizes.

O consumo desses produtos cresceu e se industrializou numa tal proporção que deixaria a tia do meu pai, 70 anos atrás, mais tonta do que a pobre galinha correndo pelo pátio. E como indústria é coisa que não acontece no quintal de casa, ou no playground do prédio, a distância entre produção e consumo final é mais do que suficiente para que aí se interponham todos os filtros. Desde os mitos nutricionais que só mais tarde serão desmentidos discretamente pelo Globo Repórter até a reconceitualização surrealista que transforma animais de abate em bichinhos felizes. A indústria cuida que nós, adultos urbanos, não nos traumatizemos com o lado feio do processo. Somos hoje mais protegidos do que as crianças de 30 ou 70 anos atrás, sistematicamente alienados e desresponsabilizados pelo que escolhemos comer. Um crescimento às avessas, rumo a uma inconseqüência – a respeito de si, dos outros seres e do planeta – sem precedentes.

Meu pai foi tratado como adulto precocemente, enquanto que eu tive a sorte de ter respeitado o meu próprio tempo. Mas só para descobrir, já crescido, que parte do que faz hoje a grande engrenagem girar trabalha para que todos continuemos crianças sem traumas e inconseqüentes, num mundo cheio de diminutivos.

sábado, 25 de agosto de 2007

Obscenidades

Sabe a experiência do grão de feijão colocado para brotar no chumaço de algodão molhado? Você a fez, quando estava na escola? Será que ainda fazem isso? Quando eu era pequeno ficávamos só com o grão de feijão, mas sei que atualmente algumas escolas dão noções de agricultura e culinária de verdade, com experiências práticas, e a criançada se diverte muito. Nas calçadas da minha infância, eu via as meninas brincando de comidinha com panelas de plástico colorido, cheias de água e grama, mas hoje os meninos também são incentivados a conhecerem os ingredientes e alquimias da cozinha, ou através da escola ou pelo exemplo dado em casa pelo pai. Com o boom de popularidade que a gastronomia teve nos últimos anos, é notável o número cada vez maior de homens se dedicando ao assunto. Bem legal.
De minha parte fiquei longe de virar um chefe de cozinha, mas aquele grão de feijão brotando quase que por mágica me estimulou mais tarde a usar todo um canteiro no quintal – depois de convencer a minha mãe – para plantar, cuidar, ver crescer, colher e finalmente comer a safra inteira do "meu" feijão. Uma delícia, por sinal. Negociei a seguir um quadrado que abri no meio do gramado, e dali surgiram cenouras e rabanetes, que comi feliz da vida. Então, antes que destruísse o resto do pátio de casa, fui sendo gentilmente convencido a parar com as plantações, uma vez que já sabia como funcionava o processo todo, da semente à comida no prato, por experiência própria.

Comer é tão fundamental que querer saber sobre comida é mesmo inevitável, e o interesse espontâneo das crianças sobre o assunto demonstra isso. As escolas fazem bem em proporcionar a experiência da horta, mas não proporcionam a experiência do abatedouro. Tudo bem que é um tipo de lugar realmente barra-pesada, mas podiam exibir um vídeo e assim cumprir com a obrigação de educar sem precisar expor os alunos ao cheiro nauseante e aos respingos de sangue, e nem isso fazem. Por quê?

Antes que você me condene pela sugestão didática extrema, deixa eu contar mais um episódio de escola. Com 13 ou 14 anos de idade meus colegas e eu fomos submetidos a uma projeção de slides contra o aborto. Se educativo não sei, mas foi certamente coerente, já que se tratava de uma escola católica, de irmãos lassalistas. Os slides traziam imagens fortes, e no que toca a chocar ou não as sensibilidades do público-alvo eram despudoradamente a favor da primeira opção. Quase 30 anos depois, ainda lembro do feto de seis meses abortado, jogado dentro de um balde num hospital norte-americano. Uau. Quem acha que escolas católicas são aborrecidas, que reveja sua opinião!

Agora eu pergunto de novo: por que não mostrar às crianças como funciona um abatedouro? Aliás, por que não mostrar nem aos adultos como funciona um abatedouro? Você sabe como é lá dentro, ao longo de toda a linha de produção? Eu aposto que não. Ou melhor, sabe sim, mas só o suficiente para não querer saber mais. O suficiente para, provavelmente, achar absurda a idéia de expor uma criança a esse tipo de cena. De certas coisas a gente pode até saber, mas não fala, não vê, não discute. Essas são as coisas obscenas, ou seja, devem permanecer escondidas porque ferem o pudor. Se é chocante ver um animal ser morto, por que é menos chocante ver um pedaço desse animal sendo mastigado em plena hora da refeição? Ou: se é bonito ver alguém atacando com prazer um naco de carne no espeto, por que não é bonito mostrar como foi atacada essa mesma carne um segundo antes de virar coisa morta?

Por que a produção de parte do que comemos é obscena?

Se uma criança não pode ver nem saber como é produzida a comida que é colocada no seu prato, então há algo de errado com essa comida. É paradoxal que quanto mais sofisticamos e popularizamos a gastronomia, menos conhecemos de fato do que e como é feito o alimento. Abstrato demais para um dos aspectos fundamentais da vida, como qualquer criança sabe. Com comida a gente deve se relacionar de maneira direta e integral. Despudoradamente.

segunda-feira, 20 de agosto de 2007

Comparações cabíveis

É tão freqüente a analogia de racismo, sexismo e escravidão humana com o especismo quanto é freqüente o incômodo de alguns com essa analogia. Animais e pessoas são diferentes, não são? Claro que são. Então comparar essas situações é descabido, não é? Não, não é.
Ainda que animais não-humanos sejam de fato diferentes de nós, os animais humanos, as semelhanças também existem. Claro, a insistência na terminologia "animais humanos e não-humanos" é só para que não esqueçamos o óbvio: a massa de indivíduos de várias espécies com quem compartilhamos nossa existência neste planeta tem muito a ver conosco, desde um parente mais distante, como um mosquito, até o nosso irmão praticamente gêmeo, o chimpanzé. Sabemos instintivamente (como bons animais) disso; sabemos disso também (como bons humanos) através da ciência. Aliás, quanto mais pesquisamos sobre alguns desses parentes, mais descobrimos complexidades que os aproximam de tudo o que julgamos mais caro a respeito de nós mesmos. Até capacidade de altruísmo alguns animais demostram ter, imagina só!
Mesmo assim, as analogias usadas na defesa dos direitos animais nem sempre se baseiam só nessas semelhanças, mas também em outras. Se animais e humanos continuam parecendo irremediavelmente diferentes para você, pense por um outro ângulo: afinal de contas, o que têm em comum um escravo, ou uma mulher oprimida, e um animal subjugado ao interesse humano que possa legitimar essas analogias?

A resposta é simples: são vítimas diferentes de um mesmo tipo de algoz: o sujeito que julga ser seu dono. E esse sujeito é tão próximo, mas tão próximo, que podemos discutir suas ações até colocá-las do avesso, sabendo que isso tem, sem dúvida e sempre, o maior cabimento.

sábado, 18 de agosto de 2007

Sacações



Fui um ovo-lacto-vegetariano meia-boca durante mais de 20 anos, e dentro de uma trajetória bastante típica: comecei abolindo a carne vermelha, anos depois parei de comer aves e, há pouco tempo, abri definitivamente mão de peixe, que ainda comia quando "não havia mesmo outra opção". A primeira motivação daquele adolescente no início dos anos 1980 foi a saúde: "cara, a carne vermelha é cheia de adrenalina porque o boi é abatido numas de horror, saca?" (a gente falava mais ou menos assim, eu juro!). Uma coisa que sempre fiz questão de frisar era que a minha opção também era fruto de eu não gostar de carne: "se me desse prazer, não sei se pararia". Esse assunto invariavelmente surgia à mesa, quase sempre em algum ajuntamento festivo e na hora em que o cardápio chegava e começavam as especulações sobre o que pedir, ou quando o primeiro bife era servido. Um amigo avisava ao resto da turma: "ah, o Cleber não come carne, viu?", e lá ia eu explicar pra alguém os meus porquês. Diante dessa recorrência, montei um discurso breve que repetia sempre, o da opção que não mexia no meu prazer, e que tirava logo o foco de cima desse assunto: meu medo maior era de ser identificado imediamente como aquele ecochato empata-foda da diversão gastronômica alheia. Como típico filho dos anos 1960, adolesci querendo o fim da ditadura militar e de todas as ditaduras, e acreditava, sem muito espaço pra discussão, que as minhas opções "cara, não podem interfeir nas opções alheias" (mas achava normal me juntar à massa agitando bandeiras do PT na rua pra, quem sabe, interferir nas opções do eleitor indeciso). Saca?

É claro que ao longo desses mais de 20 anos, e depois de muitas curvas, estendi finalmente a minha noção de prazer para incluir no rol das coisas justas até mesmo o prazer do boi de permanecer vivo, então deixei – internamente – de perceber a minha motivação vegetariana como possível apenas por não interferir no prazer do meu paladar. A essa altura já era mais do que isso. Mas socialmente sempre evitei mencionar a implicação moral positiva de salvar a vida do boi, e nisso permaneci o mesmo adolescente/jovem adulto dos anos 1980: pânico de ser o chatinho da festa, e havia ainda um fiapo de crédito incondicional aos prazeres dos meus irmãos mais próximos, os animais humanos.
Hoje, depois da curva mais abrupta, e que lamento ter chegado só às vésperas dos meus 41 anos, percebo o quanto fui coerente e incoerente bem quando achava ser o oposto. A alienação do aspecto moral na minha vivência vegeteba meia-boca não foi a chave que entendi necessária para ser aceito socialmente, mas sim a condição básica que me permitiu fazer essa negociação, assim como negociar ainda por um tempo o frango e, um pouco mais, o peixe. Se, depois de uns anos, a percepção do aspecto moral já existia e não era trazida integralmente à prática, então a própria percepção não era integral. Eu estava fundamentalmente alienado dessa moralidade, e minhas atitudes e opções foram logicamente pautadas de acordo. Quer dizer, achei por mais de 20 anos que sim, mas, cara, na real eu não estava sacando rigorosamente nada.

quinta-feira, 16 de agosto de 2007

Fulano, Beltrano e um jantar sem opções

"Opção" é uma palavra fácil da gente usar e fácil também de nos levar a meios-entendimentos. É, em princípio, bacana: implica o reconhecimento da autonomia do sujeito que opta; é democrática, igualitária, respeitosa, relativista, não-sectária... o optante é o fiel de sua própria balança, cheio de poder decisório, autor definitivo de sua história. Entre o roxo e o amarelo, hoje fico com o roxo; se amanhã quiser mudar, quem decide sou eu e apenas eu, pois não cabe nem ao roxo nem ao amarelo optar por mim.
Mas nem todo comportamento, nem toda ação é fruto de opção. Ser honesto, por exemplo, não é exatamente a outra opção possível a ser desonesto: é mais correto dizer que nós não roubamos justamente porque roubar não nos parece ser uma opção. Aqui o fiel da balança não é o sujeito optante, mas um valor ético que o próprio sujeito reconhece como superior ao seu poder individual de escolha.
Analogamente, ser vegano não é exatamente uma opção, mas os não-veganos podem muito bem enxergar nesse sujeito um exercício de "opção vegana", e terão toda razão de se sentirem bacanas, respeitosos e democráticos ao acharem aceitável que, entre o bife e a rúcula, Fulano prefira a rúcula. Mas isso é pouco, e não esclarece sobre o que de fato ocorre "entre o bife e a rúcula" na percepção de Fulano. Cabe aos veganos deixarmos clara a desimportância intrínseca das nossas escolhas quanto ao que comer ou usar, pois são secundárias em relação a um sentido que reconhecemos como maior que nossas opções individuais (nesse caso, o entendimento dos animais como sujeitos de direito). Opção vegana "de verdade" é entre a abobrinha e a rúcula, e o que resulta disso, convenhamos, não tem tanta importância assim. É por causa do reconhecimento desse sentido maior que não podemos retribuir do mesmo jeito a atitude bacana, respeitosa e democrática à – essa sim – opção do Beltrano que escolhe o bife. São hierarquias distintas sentadas à mesma mesa, e querer conciliá-las sob um mesmo discurso simplesmente não funciona. É melhor abrir mais um vinho e conversar diretamente sobre as diferentes fundamentações e conseqüências de cada hierarquia.

quarta-feira, 15 de agosto de 2007

Diferenças iguais

"Sul-coreana participa de protesto em Seul, Coréia do Sul, contra o consumo de carne de cachorro no país; parte da sociedade considera o alimento saudável, contrariando as campanhas de ativistas." (UOL, 14/08/2007)


[ foto: Ha Tae-Hwang/AFP ]

terça-feira, 14 de agosto de 2007

A ficha



Foi assim: recebi um e-mail da Naza convidando para assistir ao documentário Terráqueos (Earthlings), do diretor Shaun Monson, no auditório do Banco Central, no fim de outubro de 2006. O convite mencionava que o assunto era a dependência dos humanos em relação aos animais e o conseqüente desrespeito que cometemos com eles. Fiquei interessado imediatamente, mas não pude ir, e acabei assistindo depois, junto com o Felipe. De saída a trilha do Moby dá o clima, e aí começam as imagens e a narração do Joaquin Phoenix, encadeando sistematicamente cinco aspectos dessa relação de dependência e desrespeito: o uso de animais para companhia, alimentação, vestuário, entretenimento e pesquisa científica.

O filme – muito bem realizado – é doloroso de se assistir, pra dizer apenas o óbvio, mas é precisamente esse exercício que o torna fundamental e potencialmente transformador: é sempre bom a gente ver as conseqüências do que faz, até o fim. E nesse caso isso dói, especialmente porque não há uma cena no documentário que não seja, de alguma forma, já conhecida ou, pelo menos, intuída. Ainda que eu não soubesse que uma vaca leiteira vivendo em regime de confinamento tem sua expectativa de vida reduzida de 20 para quatro anos, bastaria em algum momento ter dedicado um segundo a mais pensando na origem do queijo ingerido diariamente para chegar à conclusão de que a vaca invisível e anterior ao queijo na embalagem talvez não estivesse vivendo a vida a que tinha direito (independentemente de estar confinada ou ser uma "vaca feliz" do sítio mais natureba e bonzinho da feira ecológica do Bom Fim).
Um segundo a mais. É esse tempo, que abre espaço para que a gente veja além do hábito cego cotidiano, que o filme propicia. Quase nada, afinal. E aí a ficha caiu: é por esse quase nada que bilhões – isso mesmo, bilhões – de animais são torturados e depois mortos a cada ano, porque tem sempre alguém exatamente como eu, prestando atenção ao queijo na embalagem sem lembrar, nem por um segundo, de uma única vaca sequer.

[ segundo o site oficial, o download do filme não está mais liberado pelo diretor (as razões ele explica aqui), e agora há uma versão estendida do DVD com legendas em inglês, francês, espanhol e português (resta descobrir se já há distribuição no Brasil); de qualquer maneira o documentário segue postado no YouTube, onde pode ser encontrado organizado em partes através de links disponibilizados pelo GAE, aqui ]

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Para situar

Veganismo:
até onde sei ainda não é verbete no Aurélio e no Houaiss, mas vem do inglês "veganism", termo cunhado em 1944 com a criação em Londres da Vegan Society. A palavra se origina da contração do início e do fim de "vegetarianism", querendo traduzir um vegeterianismo estrito, ou seja, nada de consumo de produto de origem animal (não só carne, mas também leite, ovos, mel, etc.). Indo além da dieta, veganismo passou a designar um comportamento cuja motivação básica é ética, e diz respeito ao entendimento de que os seres sencientes não são coisas a serem consumidas ou usadas para qualquer fim.

Senciente:
essa é verbete no Houaiss e é um primor de concisão: "adjetivo de dois gêneros. que sente. 1 que percebe pelos sentidos. 2 que recebe impressões". Fácil, né?

Direito:
Gary Francione tem a definição mais bacana: "Um direito é simplesmente uma maneira de proteger um interesse." Segundo ele, há basicamente dois jeitos de proteger um interesse, um que protege um interesse apenas na medida em que isso traga conseqüências gerais desejáveis e outro que protege um interesse a despeito de qualquer conseqüência geral. Por exemplo, o seu interesse de expressar determinada opinião está protegido ainda que a conseqüência disso seja a minha contrariedade. Pois bem, um direito é essa segunda maneira de proteger um interesse. [ o artigo original, em inglês, você lê aqui, e a tradução, aqui ]

Animal:
qualquer ser que não pertença a algum dos outros quatro reinos definidos pela biologia, onde se enquadram plantas, fungos, moneras e protistas. Você e eu, por exemplo.

Especismo:
preconceito baseado na espécie do indivíduo; a crença de que o pertencimento dos animais não-humanos a outras espécies daria a nós, animais humanos, justificativa moral para sobrepujarmos os seus interesses pelos interesses da nossa própria espécie.

Estamos situados? Então simbora!

sábado, 11 de agosto de 2007

O blog



Mas por quê?
Neste mar de informações a rodo, pudor de colocar mais um elemento na paisagem supersaturada. Pra quê, afinal? E pra quem? Útil, inútil ou "esse nem é o ponto", o fato é mais simples e direto: as transformações detonadas a partir do entendimento que finalmente faz com que alguém se veja vegano vêm num volume e força enormes. Impossível dar conta disso com reflexões pequenas e privadas. Surge a ponta do fio, e aí o novelo não pára mais. O blog serve, então, pra falar das reflexões que acompanham essa mudança e as colocar em espaço amplo.

Comentários e contribuições são muitíssimo bem-vindos!