Este é um blog sobre direitos animais e veganismo, abordados a partir da experiência de quem não sabia quase nada a respeito até o dia em que.

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

Para um feliz ano novo

A imagem acima foi retirada de um post do blog Diário Gauche (clique para visualizar melhor). Segue abaixo, na íntegra, um post do blog O Biscoito Fino e a Massa que reproduz as palavras mais bonitas, lúcidas e ponderadas justas* que já vi sobre a questão Israel-Palestina.

Um 2009 mais lúcido, e mais bonito, para todos nós.


Carta aberta de Uri Avnery a Barack Obama

As humildes sugestões que se seguem são baseadas nos meus 70 anos de experiência como combatente de trincheiras, soldado das forças especiais na guerra de 1948, editor-em-chefe de uma revista de notícias, membro do parlamento israelense e um dos fundadores do movimento pela paz:



1) No que se refere à paz israelense-árabe, o Sr. deve agir a partir do primeiro dia.

2) As eleições em Israel acontecerão em fevereiro de 2009. O Sr. pode ter um impacto indireto, mas importante e construtivo já no começo, anunciando sua determinação inequívoca de conseguir paz israelo-palestina, israelo-síria e israelo-pan-árabe em 2009.

3) Infelizmente, todos os seus predecessores desde 1967 jogaram duplamente. Apesar de que falaram sobre paz da boca para fora, e às vezes realizaram gestos de algum esforço pela paz, na prática eles apoiavam nosso governo em seu movimento contrário a esse esforço.
Particularmente, deram aprovação tácita à construção e ao crescimento dos assentamentos colonizadores de Israel nos territórios ocupados da Palestina e da Síria, cada um dos quais é uma mina subterrânea na estrada da paz.

4) Todos os assentamentos colonizadores são ilegais segundo a lei internacional. A distinção, às vezes feita, entre postos “ilegais” e os outros assentamentos colonizadores é pura propaganda feita para mascarar essa simples verdade.

5) Todos os assentamentos colonizadores desde 1967 foram construídos com o objetivo expresso de tornar um estado palestino – e portanto a paz – impossível, ao picotar em faixas o possível projetado Estado Palestino. Praticamente todos os departamentos de governo e o exército têm ajudado, aberta ou secretamente, a construir, consolidar e aumentar os assentamentos, como confirma o relatório preparado para o governo pela advogada Talia Sasson.

6) A estas alturas, o número de colonos na Cisjordânia já chegou a uns 250.000 (além dos 200.000 colonos da Grande Jerusalém, cujo estatuto é um pouco diferente). Eles estão politicamente isolados e são às vezes detestados pela maioria do público israelense, mas desfrutam de apoio significativo nos ministérios de governo e no exército.

7) Nenhum governo israelense ousaria confrontar a força material e política concentrada dos colonos. Esse confronto exigiria uma liderança muito forte e o apoio generoso do Presidente dos Estados Unidos para que tivesse qualquer chance de sucesso.

8) Na ausência de tudo isso, todas as “negociações de paz” são uma farsa. O governo israelense e seus apoiadores nos Estados Unidos já fizeram tudo o que é possível para impedir que as negociações com os palestinos ou com os sírios cheguem a qualquer conclusão, por causa do medo de enfrentar os colonos e seus apoiadores. As atuais negociações de “Annapolis” são tão vazias como as precedentes, com cada lado mantendo o fingimento por interesses politicos próprios.

9) A administração Clinton, e ainda mais a administração Bush, permitiram que o governo israelense mantivesse o fingimento. É, portanto, imperativo que se impeça que os membros dessas administrações desviem a política que terá o Sr. para o Oriente Médio na direção dos velhos canais.

10) É importante que o Sr. comece de novo e diga-o publicamente. Idéias desacreditadas e iniciativas falidas – como a “visão” de Bush, o “mapa do caminho”, Anápolis e coisas do tipo – devem ser lançadas à lata de lixo da história.

11) Para começar de novo, o alvo da política americana deve ser dito clara e sucintamente: atingir uma paz baseada numa solução biestatal dentro de um prazo de tempo (digamos, o fim de 2009).

12) Deve-se assinalar que este objetivo se baseia numa reavaliação do interesse nacional americano, de remover o veneno das relações muçulmano-americanas e árabe-americanas, fortalecer os regimes dedicados à paz, derrotar o terrorismo da Al-Qaeda, terminar as guerras do Iraque e do Afeganistão e atingir uma acomodação viável com o Irã.

13) Os termos da paz israelo-palestina são claros. Já foram cristalizados em milhares de horas de negociações, colóquios, encontros e conversas. São eles:
a) estabelecer-se-á um Estado da Palestina soberano e viável lado a lado com o Estado de Israel.
b) A fronteira entre os dois estados se baseará na linha de armistício de 1967 (a “Linha verde”). Alterações não substanciais poderão ser feitas por concordância mútua numa troca de territórios em base 1: 1.
c) Jerusalém Oriental, incluindo-se o Haram-al-Sharif (o “Monte do Templo”) e todos os bairros árabes servirão como Capital da Palestina. Jerusalém Ocidental, incluindo-se o Muro Ocidental e todos os bairros judeus, servirão como Capital de Israel. Uma autoridade municipal conjunta, baseada na igualdade, poderia se estabelecer por aceitação mútua, para administrar a cidade como uma unidade territorial.
d) Todos os assentamentos colonizadores de Israel – exceto aqueles que possam ser anexados no marco de uma troca consensual – serão esvaziados (veja-se o 15 abaixo)
e) Israel reconhecerá o princípio do direito de retorno dos refugiados. Uma Comissão Conjunta de Verdade e Reconciliação, composta por palestinos, israelesnses e historiadores internacionais estudará os fatos de 1948 e 1967 e determinará quem foi responsável por cada coisa. O refugiado, individualmente, terá a escolha de 1) repatriação para o Estado da Palestina; 2) permanência onde estiver agora, com compensação generosa; 3) retorno e reassentamento em Israel; 4) migração a outro país, com compensação generosa. O número de refugiados que retornarão ao território de Israel será fixado por acordo mútuo, entendendo-se que não se fará nada para materialmente alterar a composição demográfica da população de Israel. As polpuldas verbas necessárias para a implementação desta solução devem ser fornecidas pela comunidade internacional, no interesse da paz planetária. Isto economizaria muito do dinheiro gasto hoje militarmente e a partir de presentes dos EUA.
f) A Cisjordânia, Jerusalém Oriental e a Faixa de Gaza constituirão uma unidade nacional. Um vínculo extra-territorial (estrada, trilho, túnel ou ponte) ligará a Cisjordânia e a Faixa de Gaza.
g) Israel e Síria assinarão um acordo de paz. Israel recuará até a linha de 1967 e todos os assentamentos colonizadores das Colinas de Golã serão desmantelados. A Síria interromperá todas as atividades anti-Israel, conduzidas direta ou vicariamente. Os dois lados estabelecerão relações normais.
h) De acordo com a Iniciativa Saudita de Paz, todos os membros da Liga Árabe reconhecerão Israel, e terão com Israel relações normais. Poder-se-á considerar conversações sobre uma futura União do Oriente Médio, no modelo da União Européia, possivelmente incluindo a Turquia e o Irã.

14) A unidade palestina é essencial. A paz feita só com um naco da população de nada vale. Os Estados Unidos facilitarão a reconciliação palestina e a unificação das estruturas palestinas. Para isso, os EUA terminarão com o seu boicote ao Hamas (que ganhou as últimas eleições), começarão um diálogo político com o movimento e sugerirão que Israel faça o mesmo. Os EUA respeitarão quaisquer resultados de eleições palestinas.

15) O governo dos EUA ajudará o governo de Israel a enfrentar-se com o problema dos assentamentos colonizadores. A partir de agora, os colonos terão um ano para deixar os territórios ocupados e voluntariamente voltar em troca de compensação que lhes permitirá construir seus lares dentro de Israel. Depois disso, todos os assentamentos serão esvaziados, exceto aqueles em quaisquer áreas anexadas a Israel sob o acordo de paz.

16) Eu sugiro ao Sr., como Presidente dos Estados Unidos, que venha a Israel e se dirija ao povo israelense pessoalmente, não só no pódio do parlamento, mas também num comício de massas na Praça Rabin em Tel-Aviv. O Presidente Anwar Sadat, do Egito, veio a Israel em 1977 e, ao se dirigir ao povo de Israel diretamente, mudou em tudo a atitude deles em relação à paz com o Egito. No momento, a maioria dos israelenses se sente insegura, incerta e temerosa de qualquer iniciativa ousada de paz, em parte graças a uma desconfiança de qualquer coisa que venha do lado árabe. A intervenção do Sr., neste momento crítico, poderia, literalmente, fazer milagres, ao criar a base psicológica para a paz.

(esta é uma carta aberta escrita por Uri Avnery, 85 anos, ex-deputado do Knesset, soldado que ajudou a fundar Israel em 1948 e que há décadas milita pela paz. A tradução ao português é de Idelber Avelar. O obrigado pelo envio do link vai ao Daniel do Amálgama. O pedido de divulgação vai a todos os que desejam uma paz duradoura, nos termos já reconhecidos pela comunidade internacional).




[ * Ao ler o post no Biscoito Fino sobre o glossário macabro, me dei conta imediatamente da armadilha em que havia entrado com minhas próprias pernas: "ponderação" é péssima palavra aqui. Quis realçar a diferença de Avnery em relação a grande parte de seus compatriotas, mas com isso incorri no erro grave de colocar, ainda que indiretamente, racismo (para dizer o mínimo) como sendo "falta de ponderação". Um cidadão israelense que enxergue o Outro palestino não está sendo ponderado, está apenas sendo justo, correto, íntegro, ético. Mea culpa total. ]

sábado, 8 de novembro de 2008

Gary Francione em português


O site da Ánima, organização argentina pelos direitos animais, agora tem um espaço exclusivamente dedicado a reproduzir os artigos, entrevistas e textos do blog de Gary Francione em português (acesso direto aqui).


Essa é uma excelente notícia, e a iniciativa é merecedora dos maiores elogios. Dê uma conferida e divulgue.

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

A outra encruzilhada

Do site do GAE vem a notícia da aprovação do projeto de lei complementar, na Câmara Munipal de Porto Alegre, que "desclassifica como ato lesivo, no Código Municipal de Limpeza Urbana, a deposição em locais públicos de animais mortos, normalmente utilizados em cultos e liturgias de religiões afros". Prossegue a nota:

"Em abril, uma lei que estabelecia multa para quem deixasse restos de animais mortos em vias, rios, arroios e riachos havia sido sancionada e acabou se criando uma polêmica entre religiões.
À época, o texto apresentado pelo vereador Almerindo Filho (PTB), pastor da Igreja Universal do Reino de Deus, e sancionado pelo então prefeito interino, Eliseu Santos (PTB), ligado à Assembléia de Deus, indicava multa de até R$ 330. Sentindo-se vítimas de preconceito, seguidores de religiões afrobrasileiras protestaram.
Apesar de a norma não fazer referência direta a manifestações de credo, eles afirmaram que a legislação atingia em cheio práticas religiosas afro. É comum, em despachos, deixar restos de animais, como galinha, após oferendas para orixás realizadas nas encruzilhadas.
Autor do projeto, o vereador Guilherme Barbosa (PT) disse que era necessário corrigir o erro trazido pela lei complementar, pois teria causado conseqüências negativas a atividades religiosas que utilizam o sacrifício de animais."

A votação do projeto contou com 20 votos a favor e 6 contra, e agora aguarda a sanção do prefeito.

Essa notícia me chega como um sublinhado na situação vivida nas últimas eleições. Priorizando a questão ambiental e dos direitos animais como filtro na hora em que fui escolher em quem votar para vereador (desde que do PT ou alinhado à esquerda), o cenário oferecido se mostrou francamente desencorajador. Embora pareça paradoxal, a esquerda tende a votar contra os direitos animais, e a direita, a favor. Mas não há paradoxo.

A esquerda, por definição mais sensível ao coletivo e às questões de direitos humanos, não consegue dar um passo além e ampliar as fronteiras da noção de coletividade ou incluir os animais como também sujeitos de direito. A recente votação na cidade pelo fim das carroças é o exemplo mais bem acabado da prática baseada nessa visão de curto alcance: a esquerda votou maciçamente pela continuidade do modelo que, ao pretender proteger o carroceiro, mantém o cavalo condenado à exploração. A extinção das carroças (em oito anos!) foi aprovada, mas por muito pouco, e graças aos partidos de direita. A expectativa pela libertação dos cavalos é inquestionavelmente um fato a ser comemorado, mas fica o desconforto ideológico da aprovação ter se dado nessas circunstâncias.

A direita, por sua vez, pode eventualmente coincidir sua prática política com a defesa dos direitos animais, mas não tem uma gota sequer em seu discurso que contemple de fato esses direitos. Assim como o fim das carroças pode ser desejável apenas em função do ideal do que deva ser uma cidade "desenvolvida" (portanto: cavalos? que cavalos?), a interdição aos despachos nos permite imaginar desde motivações meramente higiênicas até as escancaradamente racistas, e acho que não erraremos muito se deixarmos a imaginação correr solta nesse caso...

O defensor dos direitos animais, seja ele de esquerda ou de direita, continua tendo como tarefa a inclusão dessa pauta no projeto político com o qual se afina. Na política partidária, permanecemos todos sem representação. As convergências, assim, acabam se dando de maneira tão enviezada que estão sempre a um passo de sua própria deslegitimização, e resultam em um desgaste que pode debilitar a luta política pelos direitos animais propriamente dita.

Ah, e sobre os despachos?

Bom, acho que em uma sociedade laica todas as manifestações religiosas devem guardar os limites legais entendendo que estes têm como foro de discussão um ambiente laico. Quanto ao legislativo, é importante lembrar da diferença entre defesa da liberdade de culto e defesa da liturgia do culto. A primeira é obrigação constitucional que diz respeito a todos; a segunda, obviamente, não.

[ a ilustração foi retirada do Codex Magliabechiano (meados do século XVI), e mostra uma cena de sacrifício humano, parte integrante da religião asteca ]

domingo, 10 de agosto de 2008

Perder e encontrar

Ainda no embalo da discussão que aconteceu no Biscoito Fino e a Massa, fiquei com vontade de falar mais sobre um ponto que abordei muito de passagem por lá.

Nos debates sobre direitos animais, boa parte das reações dos que não concordam com essa idéia tem uma coisa em comum que sempre me impressiona bastante: o medo da perda da humanidade. De várias maneiras aparece nas entrelinhas – às vezes explicitamente fora delas – a certeza de que, se olhar para o animal não-humano de outra forma que não a do especismo vigente, o animal humano vai fazer com que o bicho deixe de ser bicho e o homem deixe de ser homem. Tipo a quebra de um encantamento, que devolve todos ao caos. Nesse espaço subitamente tornado confuso pelo rompimento da fronteira tranqüilizadora entre homens e bichos, é o medo então que passa a comandar o leme e a definir o rumo das coisas.
Fico pensando nisso porque a reação apaixonada, que é coisa por si só muito interessante, tem sempre nesse debate um tom de ultraje. E eu gosto muito da força dessa palavra, e acho muito potente a situação de quem se sente ultrajado. Tem algo de quebra, de violação no ato de ultrajar. Embora o momento do ultraje seja de passividade, de perceber e sentir a violação cometida, só os deuses sabem o que pode vir depois disso. Do ultrajado dá para esperar qualquer coisa.
Então, diante de fronteiras que se diluem e parecem levar para o ralo a humanidade do debatedor reativo, o medo e o ultraje surgem como componentes-chave dos argumentos que, a essa altura, provavelmente serão ditos alguns decibéis acima do normal. Ou escritos em caixa-alta.

Me contou a querida Naza, que tem a experiência de colocar o debate sobre direitos animais para seus alunos na universidade, sobre a aluna que reagiu de maneira mais extremada à exibição de Terráqueos e depois se tornou vegana. É um bom exemplo de potência (nesse caso, transformadora) advinda da situação de ultraje. A mesma mobilização que dá energia para elevar os decibéis também serve de combustível para detonar um processo de reflexão onde não caberá mais o medo da fronteira explodida, do ralo engolidor de humanidade.

Como se isso tudo já não fosse bonito o suficiente, para mim o que há de mais bacana é o que se segue. Parecido com a transição entre as distintas realidades do sono e da vigília, o momento de encarar sem medo a possibilidade da própria humanidade escoar pelo ralo nebuloso é o momento mesmo de redescobrir essa humanidade. Ela não só continua lá, intacta, mas além disso agora se encontra também fortalecida e revigorada pelo processo todo. Afinal quem passou pelo medo, o ultraje, a raiva e a reflexão não foi nada e nem ninguém senão o próprio homem. É assim que a assombração da perda se desvanece sem o estardalhaço com que começou. Esse é o ponto em que toda histeria cessa. A vida pode finalmente começar a se desenhar em outros termos, pois agora há um autor que acaba de se reencontrar.

Então sigo interessado e impressionado conforme as experiências confirmam: o debate inflamado nem sempre é vazio. Às vezes uma contra-argumentação raivosa é apenas destrutiva, mas, ironicamente, há brechas para uma reflexão mais ponderada que só conseguem ser abertas pela força da raiva. Um paradoxo. Tipicamente humano.

[ a cena que ilustra o post mostra a personagem-título de Medéia, interpretada por Maria Callas no filme de Pasolini sobre o qual já falei aqui. Medéia é o exemplo-mor do que um ultraje é capaz de causar. Jasão que o diga. ]

sábado, 9 de agosto de 2008

Discussão no Biscoito

No meu blog favorito, O Biscoito Fino e a Massa, o grande Idelber Avelar postou anteontem sobre um recente atentado a bomba à casa de um professor norte-americano que trabalha com pesquisa fazendo uso de ratos. O título é "Ecoterrorismo e fundamentalismo natureba", e as considerações que acompanham a notícia do fato geraram uma discussão que passou dos cem comentários. Não relato aqui especificamente sobre esses comentários porque já expressei minha opinião lá mesmo, mas a coisa toda é bastante exemplar sobre como costuma transcorrer tipicamente um debate desses. Os argumentos e contra-argumentos, mesmo os piores, são muito vívidos, e a sua concretude (para bem ou para mal) é berrantemente reveladora do ponto em que estamos todos sobre essa questão. Vale a pena dar uma conferida.

segunda-feira, 14 de julho de 2008

"Exigimos a saída de Gilmar Mendes do STF"

É a petição on-line que você pode assinar aqui.
Não é preciso dizer mais nada, né?

terça-feira, 8 de julho de 2008

Mas será o Benedito?

O senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG) é relator de um parecer que examina um projeto de lei da Câmara e dois projetos do Senado que tratam dos crimes de informática. O parecer do senador Azeredo, já aprovado na Comissão de Constituição e Justiça do Senado, após alterações aos projetos originais, emendas, substitutivos, etc., etc., resultou num conjunto de medidas que acabam com a liberdade no uso da Internet pelos brasileiros, com regulamentações que chegam ao ridículo (leia aqui).

André Lemos (Prof. Associado da Faculdade de Comunicação da UFBA, Pesquisador 1 do CNPq) e Sérgio Amadeu da Silveira (Professor Titular Faculdade Cásper Líbero, ativista do software livre – blog aqui) escreveram uma petição em reação a esse absurdo que você pode ler e assinar aqui.

Eu já assinei.

domingo, 6 de julho de 2008

Louis Theroux, mezzo roto, mezzo esfarrapado

Assisti na última sexta-feira a um programa de Louis Theroux no GNT sobre caçadores e caçadas na África do Sul (Louis Theroux's African Hunting Holiday, 2008). Louis Theroux é um jornalista da BBC2 que faz imersões muito contundentes naquilo que ele próprio chama de "subculturas". Misturando os papéis de observador e participante dos rituais específicos de cada universo investigado, ele já mostrou a indústria pornográfica, os infomercials e o televangelismo, por exemplo. Eu sempre gostei de assistir. Vi a chamada uns dias antes e fiquei ligado e acabei esquecendo, mas na sexta-feira peguei o programa do início por pura sorte, enquanto zapeava atrás de alguma coisa interessante. Chamei o Felipe e ficamos os dois esperando para ver o que resultaria dessa imersão específica.

Sinopse: Louis Theroux vai à África do Sul, mais especificamente a fazendas de caça, onde acompanha os proprietários que criam animais selvagens e os turistas que estão ali para caçá-los, pagando a aventura de acordo com o animal abatido. Um porco-do-mato custa cerca de 250 dólares a cabeça, enquanto que animais maiores e mais raros, como o rinoceronte, podem chegar a 70 mil dólares americanos ou mais.

Alguns dados: essas fazendas costumavam ser locais ou de criação de gado ou de plantação. Diante da demanda cada vez maior, especialmente de norte-americanos, os proprietários migraram para a exploração da caça "selvagem". Reconstituíram o ambiente de savana e passaram a criar babuínos, gnus, girafas, zebras, leões e outras espécies com a finalidade específica de serem abatidas por caçadores ansiosos para levar um "troféu" para casa. Pense bem: quem não adoraria ter uma cabeça de rinoceronte ornamentando a parede da sala de estar?

Mais dados: um criador de leões mostra como os seus animais são bonitos, bem criados e sem cicatrizes, ao passo que numa caça convencional você levaria para casa a cabeça de um leão provavelmente todo estropiado. Vamos combinar, não há decoração que resista, né? Outra questão é o aproveitamento do tempo. Você poderia ficar uns três meses no Zimbábue, por exemplo, até conseguir caçar um animal que valesse a pena. Numa fazenda sul-africana, você pode matar cinco ou seis em um só dia, a tiro ou flechada. Uau.

Há tanto o que falar sobre isso tudo. O ambiente controlado. A vida como parque temático. A busca ensandecida por the real thing na exata medida em que é a confissão da perda da capacidade de conexão com qualquer coisa que possa, mesmo de longe, ser chamada de real. Enfim.

Mas vamos ficar com Louis Theroux e o programa em si. Que abre com um sujeito, dono de uma dessas fazendas, acompanhando a filha, uma loirinha fofa de seis ou sete anos, abatendo o seu primeiro troféu: um porco-do-mato que pastava desavisada e tranqüilamente a alguns poucos metros do abrigo-disfarce de onde a menina disparou, com precisão, mirando no tronco logo atrás da pata dianteira. Pulmão e coração atingidos, o pai congratula a menina diante do corpo morto e ensangüentado: "Belo tiro!"
É esse mesmo sujeito que, lá pela metade do programa, avisa a Louis Theroux sobre a inconsistência do seu choque a respeito dos animais que estão ali "apenas para serem mortos" diante da crueldade maior de qualquer abatedouro no manejo e morte da vaca cotidiana. Ele está certo, é claro, mas ao invés disso abrir uma brecha sobre o bife aparentemente inquestionável, acaba por pavimentar a estrada de Louis Theroux rumo à experiência de se tornar, ele próprio, um caçador. A conexão com aquele "eu interior" que não passa, você sabe, de um assassino tanto naturalizado quanto ancestral. (Ninguém lembra que os nossos ancestrais de verdade contavam com pouco mais do que as próprias mãos para caçar e que fazendas "cace-e-pague" são invenção recentíssima, mas quem se importa?)

Assim Louis Theroux se vê dentro de um abrigo, empunhando uma besta munida de mira telescópica, prestes a apertar o gatilho e matar o seu primeiro porco-do-mato. Tal e qual a menina de seis ou sete anos. A besta chega a ser armada, mas na hora H o repórter diz ao seu acompanhante caçador: "Não posso. Eu não tenho vontade de matar." O acompanhante o consola lembrando que está tudo bem, pois alguns de nós são caçadores, outros, não.

Ah, bom.

O programa termina com Louis Theroux, frouxamente, dizendo que come o bife, mas não consegue caçar. A pergunta óbvia (e que não é feita) seria "Por que isso acontece?", só que o esboço de reflexão logo se perde diante da menção ao fato "paradoxal" de um criador que praticamente "salvou" uma espécie da extinção ao criá-la extensivamente para a caça em fazendas... O falso paradoxo resume o tom do programa, cujos pontos levantados parece que sim, mas nunca chegam de fato a desafiar a noção dos animais como objetos. Tudo parte do fato de como esses objetos são tratados. A morte certeira e limpa numa fazenda de caça é mais honesta do que a morte torturante num abatedouro? É isso? É essa a questão?

Não: a questão é outra, e diz respeito à possibilidade, sempre presente e sistematicamente recusada, de simplesmente não matar, não abusar, não pretender possuir.

[ a imagem que ilustra o post foi retirada da página da BBC News com informações sobre o programa, que você acessa aqui ]

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Projeto Floresta Zero

O projeto de lei 6424/2005, originalmente de autoria do senador Flexa Ribeiro (PSDB-PA) e posteriomente modificado pela Comissão de Agricultura do Congresso, altera o Código Florestal brasileiro, autorizando a derrubada de até 50% de floresta nativa nas propriedades privadas na Amazônia. A legislação atual prevê um limite máximo de 20%. Além de ampliar a permissão para acabar com o que ainda está de pé, o projeto cancela multas de autuações ambientais ocorridas antes da publicação da lei, legalizando praticamente todos os desmatamentos dos últimos 40 anos na região, o que dá em torno de 700 mil quilômetros quadrados de floresta. Não tem idéia do tamanho disso? É quase a área equivalente a três estados de São Paulo. Como se não bastasse, ainda permite que a "recuperação" de áreas degradadas se dê pelo plantio de espécies exóticas ou em outras áreas. É isso mesmo: você derruba floresta nativa e compensa plantando cacau, dendê, teca ou eucalipto (todos exploráveis economicamente, é claro). Melhor ainda, não precisa fazê-lo exatamente na área degradada: se "não der" para replantar ali mesmo (segundo os critérios do órgão ambiental estadual), pode ser em outra microbacia ou bacia hidrográfica do estado.

As modificações que tornaram o que já era espantoso em absolutamente inacreditável ocorreram depois que o relator do projeto de lei na Comissão de Agricultura e Pecuária, deputado Homero Pereira (PR-MT) — que já foi presidente da associação de produtores de soja do Mato Grosso — acatou as emendas favoráveis aos ruralistas e rejeitou as emendas propostas pelo Ministério do Meio Ambiente. Seu relatório foi votado e aprovado em 19 de dezembro de 2007 por 24 votos a 1.

Essa gracinha agora tramita na Câmara dos Deputados pelas mãos zelosas da bancada ruralista, que fica lá, costurando seus apoios na surdina, torcendo para que tudo ocorra na maior invisibilidade. Atualmente o projeto de lei aguarda votação na Comissão de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, com relatoria do deputado Jorge Khoury (DEM-BA), e depois deve seguir para a Comissão de Constituição e Justiça antes de retornar ao Senado para análise das modificações efetuadas pela Câmara.

Enquanto isso...

O Greenpeace, juntamente com outras entidades, lançou a campanha cujo logo ilustra este post e que está levantando um abaixo-assinado para que os cidadãos se manifestem contrariamente a esse absurdo.

Para assinar, clique aqui.


[ o texto do relatório da aprovado pela Comissão de Agricultura está disponível em pdf aqui ]

sábado, 12 de abril de 2008

Explícito implícito

Descobri outro dia no site de Gary Francione que estão disponíveis versões em português dos vídeos dele. Na realidade são slides de texto e imagem em forma de vídeo. O primeiro, Teoria dos direitos animais, dá uma geral e introduz o assunto. Não há sequer trilha sonora e as imagens são poucas, e me chamou a atenção a falta de imagens "chocantes". Há cenas de animais mortos ou feridos, mas uma foto de jornal ilustrando alguma matéria sobre produção pecuária corre o risco de ser mais perturbadora. Gostei. Imediatamente me deu vontade de apresentar o vídeo pra todo mundo. Hoje enviei um e-mail para os amigos queridos dando o link até o vídeo e explicando do que se tratava, e explicitamente avisando de que ninguém seria submetido a um "show de horrores" caso se dispusesse a assistir. Quer dizer: eu sou absolutamente a favor do show de horrores. Assisti a Terráqueos e sei o quanto a crueza de todas aquelas cenas ajudou na minha mobilização imediata com o assunto (mas falo sobre isso em seguida). E acho importante salientar que qualquer diferença dessa natureza na abordagem do tema há de se dar num nível bastante superficial. Uma imagem ou duzentos e cinqüenta? Com ou sem sangue? Isso tudo é irrelevante uma vez que se tenha realmente começado a enfrentar a questão, mas, antes que esse momento aconteça, a abordagem "menos chocante" dos direitos animais me parece uma boa alternativa para alcançar aquelas pessoas que sabem o tanto de horror que está necessariamente implicado nesse tema. As pessoas que, exatamente por causa disso, não querem mais saber. Ou saber "mais" do que já sabem. O dado explícito e chocante das imagens (ou da descrição textual pormenorizada) acaba servindo de justificativa para o afastamento total do debate, e falo aqui principalmente do debate consigo mesmo. É a hora de dar stop no player, a hora de fechar o livro, a hora de amassar o panfleto. "Vamos mudar de assunto?" Uma pena, pois quando alguém se recusa a pensar sobre isso nesses termos está se recusando a debater o assunto de qualquer maneira, pois não há como alienar esses termos da discussão. Seria mais ou menos como tentar discutir o Holocausto sem passar pelo terror dos campos de concentração, ou debater os problemas por que passa a população afro-descendente do Brasil deixando de lado tudo o que aconteceu antes de 13 de maio de 1888.
"Quem precisa saber das condições enfrentadas nos navios negreiros, por exemplo? Vamos mudar de assunto?"

Não. Nossa consciência nos diz: precisamos de todo detalhe sobre os navios negreiros e as senzalas, toda descrição macabra sobre os guetos e os campos. A fatura desse enfrentamento deve ser debitada na conta de todos nós. Esse assunto é nosso, gostemos ou não. Por isso me sinto bastante afortunado pela oportunidade de ter assistido a Terráqueos. Por ter sido confrontado com o que é também da minha conta. Foi importante ter conseguido não desviar o olho uma vez sequer, e eu quis fazer isso várias vezes. O dedo coçava pra apertar o stop no controle remoto. Mas tratei de agüentar no osso, porque aquilo me dizia respeito. Não olhar para aquelas cenas seria proceder a mais uma violência contra as vítimas que aparecem no filme. Ignorar seu sofrimento seria matá-las uma vez mais. Por fim ficou claro que meu estômago embrulhado, minha culpa, meu horror não eram nada, rigorosamente n-a-d-a diante do que cada um daqueles seres passou. Num jogo de forças em que trezentas emoções conflitantes brigam dentro de você, o que acabou prevalecendo foi um sentimento básico de acatar a responsabilidade por aquelas cenas, e esse foi o ponto exato que detonou toda a transformação posterior.

Aí, pra colocar a imagem no post anterior a este fui obrigado a rever o filme justamente na parte em que eu mais quis fugir dele. A pior cena, a mais terrível pra mim. Tanto, que não conseguia sequer falar sobre ela. Eu só conseguia dizer "tem uma parte...". Fiquei assim por semanas, meses até. Que nada: um ano e quatro meses. Só consegui verbalizar a frase "a cena da raposa" quando comentei com o Felipe sobre a ilustração que iria colocar no post. Como para ele tudo ocorreu de maneira muito parecida, até então éramos dois imbecis falando sobre esse momento particular do filme:

— É que naquela hora.
— Pois é.
— Não dá nem pra falar, né?
— É.
— Pois é.

O blog não tem como característica o uso dessas imagens terríveis. Mas no último post eu achei que precisava colocar a raposa. E tive de ir buscá-la no filme. Pra achar um frame adequado, revi e revi a cena que tanto me doera. Doeu de novo, é claro, mas dessa vez percebi uma relação diferente com a dor, e que agora me parece difícil colocar em palavras. Um outro entendimento, talvez, a partir da sensação de que, num mundo especista e cheio de contradições a respeito, o enfrentamento dessa dor não é apenas previsível. Ele é, realmente, necessário.

[ para ir direto aos vídeos no site de Gary Francione, clique aqui (e veja se você não fica com vontade de também mandar o link para os seus amigos...); a ilustração do post foi retirada da cena menos explícita de A lista de Schindler, filme de Steven Spielberg de 1993 ]

sábado, 29 de março de 2008

Parênteses

Depois que você passa a incluir nas suas preocupações os direitos animais e trata de viver de acordo com isso, não faltam situações de confronto com o padrão especista vigente, especialmente perturbadoras nos momentos mais simplinhos e cotidianos. É no miúdo que o enraizamento profundo do especismo se deixa ver com mais eloqüência: tão sólido e natural para uns quanto absurdo e insustentável para outros. Uma situação de tensão típica é juntar à mesma mesa onívoros e veganos, e o tanto de discussão proveitosa ou hostilidade aberta que pode resultar desse encontro vai depender de civilidades e humores. Se for para apostar na convivência das diferenças, cabe ao vegano, em tal situação, guardar o discurso mais contundente para o momento em que ele se oportunize – caso se oportunize – no encaminhamento natural da conversa. Que pode até se dar no meio do próprio jantar, por que não? Por isso cabe ao onívoro ter cuidado com o que comenta ou questiona e, sobretudo, como faz o comentário ou o questionamento. A pergunta "você não come carne?" não precisa ser respondida com a descrição pormenorizada do processo de abate num matadouro, mas se após ser informado das convicções do outro o onívoro conduzir a prosa rumo à desqualificação dessas convicções, aí ele merece sim alguma resposta que abra uns belos parênteses bem no meio do seu bife. O momento de refeição/prazer de uma pessoa não é, em si mesmo, mais sagrado que qualquer momento de outra pessoa. As circunstâncias devem dar o tom e a medida para todos. Mas o especismo continua sendo o paradigma da maioria, então é comum ver onívoros, cheios da razão impensada que o pertencimento à maioria proporciona, se dizerem muito incomodados de ter o seu prazer estragado por algum comentário radical e desagradável, não importam as circunstâncias.

Fiquei pensando nisso porque hoje, no meio do almoço, com a TV ligada no Jornal Hoje, assisti à seguinte matéria:

"Duzentas e setenta e cinco mil focas devem ser mortas na temporada de caça no Canadá. Para diminuir a crueldade, o governo determinou que os animais só podem ser abatidos a tiros ou com golpes na cabeça e pediu aos caçadores que, antes de retirar a pele das focas, se certifiquem de que elas estão mortas.
Os ecologistas protestaram. Segundo eles, as novas regras não vão impedir a matança bárbara dos animais."

Como são as coisas: para ter a sua refeição estragada nem é preciso ser onívoro, e muito menos ter ao lado um defensor dos direitos animais radical e desagradável. A realidade sozinha já se encarrega disso.

[ o trecho da matéria foi reproduzido na íntegra, e pode ser visto aqui; a ilustração do post foi retirada do documentário Terráqueos (Earthlings), e mostra uma raposa viva momentos após ter tido sua pele inteira arrancada a sangue frio, em uma fazenda de peles chinesa; as focas no Canadá não sofrem horrores menores: aqui você pode assinar uma carta ao ministro canadense do Comércio Internacional para que acabe com esse absurdo ]

quinta-feira, 20 de março de 2008

Das comemorações

Não bastasse a notícia recente de que a caça esportiva foi proibida no Rio Grande Grande do Sul pelo TRF, trazida pela EcoAgência, deu hoje na Folha Online: o Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) proibiu o procedimento de corte de orelhas e cordas vocais em cachorros e remoção de unhas em gatos. A medida, publicada ontem no Diário Oficial da União, também torna não-recomendado o corte de cauda em cachorros.

Gente!

Diz a matéria: " 'A conchectomia [corte da orelha] e caudectomia [corte da cauda] são tradições que alguém criou por entender que os animais ficam mais bonitos nessa condição, mas temos que respeitar o direito deles', afirmou Benedito Fortes de Arruda, presidente do CFMV."

Yes!

Manifestando-se contrário à resolução, Délio Mendes, criador de cães doberman em Brasília, diz que nas competições da raça os animais com orelhas cortadas levam vantagem por seguirem a orientação da federação internacional. Hein? Ele completa, candidamente: "É para satisfazer o ego do dono? É, mas a vaidade tem benefício para o cachorro, que vai poder comer ração de boa qualidade pelo investimento que o dono faz nele."

Eu é que não queria ser amigo desse Délio: deve ser o tipo de sujeito que só te oferece uma cerveja se você satisfizer a vaidade dele:
— Ô, Delinho, como você tá bonito hoje, rapaz!... sim, quero sim, com pouco colarinho, por favor. Lindão!

[ sobre a proibição da caça esportiva, veja a notícia aqui; a matéria da Folha Online você pode ler aqui ]

sexta-feira, 7 de março de 2008

O inferno dos outros não é outro inferno

Felipe e eu estávamos anteontem no final da manhã esperando ônibus numa grande avenida da cidade. O calor, a poluição e o ruído excessivo tinham me colocado rapidamente em profundo desconforto físico. Lamentava não ter um carro e resolver a tarefa simples de comprar material de ferragem sem precisar ficar ali à espera. Esse material era para finalizar um trabalho doméstico que estava por trás do principal motivo do meu desconforto: poucos dias antes, para instalar prateleiras em casa, tive de fazer exatos 24 furos numa parede que se mostrou mais resistente do que prometia. Foram alguns bons minutos ininterruptos com a furadeira em modo "impacto". Quando acabei, meu ouvido direito zumbia e apitava como se recém-saído de um show de rock, daqueles em que você fica muito perto de alguma caixa acústica. Nada que uma boa noite de sono não resolva, pensei. Mas o dia seguinte começou com o meu primeiro lampejo de consciência já detectando: o zumbido-apito ainda estava lá, e tão forte como antes. Well...
A Internet me esclareceu o termo médico: tinnitus. Pode ser causado por doença ou por trauma. A partir de 85 decibéis os ruídos começam a causar algum estrago à audição. Uma furadeira pode chegar a 105 decibéis. A extensão do dano vai depender da sensibilidade do indivíduo, da intensidade do ruído, do tempo de exposição a ele e também do quanto o ouvido já foi afetado em ocasiões anteriores. O tempo necessário à recuperação aumenta a cada novo trauma. Às vezes, o tamanho do trauma ou a sua repetição tornam o tinnitus permanente. Uns 17% da população mundial têm de conviver com um ruído de algum tipo que está lá, dentro da cabeça, e do qual não se pode escapar. Não há como saber se o tinnitus vai sumir ou não a não ser esperando pra ver. Pode durar dias, mas, pelo que li, em geral deve desaparecer em até 24 horas em 90% dos casos, chegando até 48 horas os outros 10%.

Meu primeiro dia pós-trauma foi um inferno de assombrações me dizendo que estava condenado àquele incômodo para o resto da vida. Quando fecharam as 24 horas eu comecei a ter a impressão de que alguma diferença estava ocorrendo conforme eu protegia ou não o ouvido de qualquer ruído. Apostei nisso e o vedei o quanto pude com algodão, mas arrasado pela desconfiança de que a impressão talvez não passasse mesmo de apenas uma impressão. Enfim, foi só do segundo para o terceiro dia que tive certeza: o ouvido estava, aos poucos, se recuperando.

Esperando por aquele ônibus, agora muito sensível às agressões acústicas causadas pelo trânsito de uma cidade grande, eu pensava na falta de um carro e na minha recente e perigosa aproximação à situação de condenado eterno a um desconforto do qual não se pode escapar. Já imaginou? Nunca mais a sensação de poder descansar no silêncio, ou seja, nunca mais descansar. Para sempre sem saída, como um enterrado vivo. Um horror.
O ônibus demorava. Calor, poluição, ruído. A falta de um carro, e eu tão desconfortável e justificado por quase ter me estropiado para o resto da vida que, ao lembrar que por outro lado isso significava também um carro a menos nas ruas, pensei: "Dane-se!". Naquele momento de imersão autocentrada, o que havia em mim de generosidade e solidariedade estava reduzido a quase zero. Até que saí do meu transe umbilical quando ouvi o Felipe dizendo "Oh!". Me virei e vi: descendo a avenida, um cavalo com uma carroça presa às suas costas lutava para não cair, as patas fugindo ao controle. Muito magro e visivelmente fraco, as ferraduras eram armadilhas no asfalto escorregadio, com todo o peso da carroça o empurrando ladeira abaixo. O sinal fechou e não foi fácil parar a tempo. Triste cena urbana porto-alegrense no início do século 21: um homem e uma mulher numa carroça, na avenida movimentadíssima, puxada por um cavalo fraco, provavelmente doente e desnutrido, à beira de tombar de exaustão, de dificuldade, de impossibilidade de prosseguir.

Imediatamente me conectei com o peso nas costas. O ângulo de visão restringido. O caminhar escorregadio e a relação direta com o solo definitivamente comprometida pelo metal estranho ao corpo. Metal também na boca, onde se sentem as tensões das rédeas puxadas. A fraqueza tomando conta dos membros. O ruído excessivo e constante do trânsito, o cheiro agressivo da poluição. Todos os sentidos ali, presentes num organismo vivo e complexo, e todos eles condenados a um estresse constante. Não se trata de um trauma temporário, portanto não há o que esperar. O amanhã será a repetição agoniante do hoje. Enquanto forem mantidos como regra seu status de propriedade, a crueldade talvez ignorante dos que se pretendem seus donos e a indiferença de todos nós outros, é certo que o cavalo será usado até acabar, como um objeto, e até acabar será esse inferno. Fosse um ser livre, ele teria autonomia para preencher a vida de experiências trazidas por sentidos também livres. Mas não é o caso. Quanto a mim, devidamente arrancado da minha bolha de autocentramento pela cena triste e injustificável, olhei e vi minhas assombrações recentes plenamente consumadas na vida miserável daquele cavalo. Para sempre sem saída.

O horror. O horror. O horror.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

A última prateleira

Quanto se inicia qualquer discussão envolvendo direitos animais e veganismo, é batata que aparecerão muito espontaneamente alguns argumentos que, embora rasinhos que só e pobres de marré, podem surgir tanto na boca de pessoas pouco esclarecidas quanto na de gente muito bem preparada para qualquer debate. É que esses argumentos não se mantêm dentro de nenhuma fronteira de nível de escolaridade, classe econômica ou de qualquer outro divisor sociocultural. Estão disseminados por tudo e todos como um bem comum, à disposição, e podem acabar sendo, num momento ou outro, acionados por qualquer um de nós. Alguns deles já tive como meus, e outros li por aí ou pude ouvir boquiaberto, mas pego tão "de surpresa" que não consegui rebater de imediato. Talvez não exatamente pela surpresa: podemos ficar desarmados não pela força desse tipo de argumento – que é sempre lugar-comum –, mas pela força da facilidade automática com que ele surge, por mais absurdo ou contraditório que seja. Acho isso uma incrível evidência do poder da naturalização das idéias. É certo que as coisas que temos como corretas não precisam ser necessariamente fruto de conclusões elaboradas. No final das contas, a maior parte dos fundamentos conceituais da nossa vida cotidiana parece mesmo estar guardada lá na última prateleira da estante. "Alguém" os colocou lá, e ainda que visitemos a estante várias vezes por dia trocando um livro por outro, a última prateleira segue intocada, acumulando pó. Uma vez trazidos para o debate, os pobres e rasos argumentos não resistem ao menor exame, mas alcançar a última prateleira é que são elas.

Aproveitando o carnaval pra revisar o pó da
minha, sua, nossa última prateleira, elenco abaixo alguns desses argumentos, seguidos das respostas que muito sinceramente eu acho que eles de fato merecem. Na boa.


A evolução naturalmente nos colocou no topo da cadeia alimentar
E por "cadeia alimentar" entenda-se qualquer cadeia de supermercados onde nós, os predadores, vamos caçar nosso alimento armados de cédulas, cheques ou cartões de crédito. Bem naturalmente.

Animais matam outros animais para comer
É verdade. Coisa mais linda é ver no National Geographic Channel os leões manejando suas criações de impalas, inseminando-os artificialmente, dando vacina e hormônio. Ou os macacos da Amazônia, superinteligentes, abrindo a floresta pra fazer pasto pro gado: tem coisa mais comovente?

O ser humano é onívoro
Todos sabem que devemos obviamente comer de tudo. Carniça. Bambu. Água-viva. Cocô. Baconzitos. Plástico.

Então não podemos também comer as plantas
Isso mesmo, e devemos lembrar de outras lutas importantes: não criar o trigo em confinamento; não separar os filhotes de alface da mãe logo após o nascimento; não impedir a vida social das maçãs. E nem me fale da crueldade dos casacos de pele de feijão e dos circos de brócolis amestrados.

Mas e as crianças?
Vão bem, obrigado.

Se "tudo" tem vida, então a preservação apenas da vida animal é hipócrita ou ignorante
Logo só temos duas opções: ou preservamos a vida onde quer que ela se manifeste ou assumimos de uma vez que podemos acabar com ela sempre que desejarmos. Em outras palavras, você escolhe entre viver de luz ou matar quem quer que atrapalhe seu caminho. Tomar um antibiótico é uma atitude moralmente equivalente a estourar os miolos daquele espertinho que fura a fila do cinema. Quer dizer, quase, né?: o antibiótico mata muito mais vida.

Simplesmente não consigo parar de comer carne
Eu também simplesmente não consigo parar de olhar para as suas carnes, benzinho!

Os direitos animais são apenas mais uma invenção humana
Em contrapartida, o churrasco só pode mesmo ter sido inventado por Deus. Ou pela estátua do Laçador.

Precisamos de proteína e cálcio

Sim, e só há proteína nas carnes e só há cálcio no leite. E também só há uma verdade nutricional, justamente aquela referendada pelos produtores de carne e a indústria de laticínios.

Comer carne é uma tradição cultural que deve ser mantida
Pode crer: aqui na caverna da minha família, nos orgulhamos de manter a fogueira ininterruptamente acesa há uns 50 mil anos. O fogo, além de calor, fornece uma boa iluminação. Amanhã devo acabar a pintura de mais um bisão. Vai ficar lindo de morrer.

O estilo de vida vegano é muito radical
Não é? Pense bem: a própria pessoa racionalmente se responsabilizar pela sua dieta e seus hábitos de vida levando em consideração o impacto que causa aos outros e ao meio é praticamente um rafting, um bungee jumping, um rapel no Salto Ángel. Gente louca.

Deus criou os animais para que nos servissem de alimento e vestuário
Exatamente como demonstrado por Charles Darwin.

Defensores dos direitos animais são caga-regras mal-humorados
Ô pessoalzinho chato! Se levam tão a sério e são tão insuportáveis quanto os defensores dos direitos humanos. Mas não me entenda mal: é evidente que sou a favor dos direitos humanos. Pra humanos direitos, é claro.

[ a imagem que ilustra o post é da Biblioteca Joanina, na Universidade de Coimbra, Portugal ]

quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Puxa, Sonia, que pena

Dezembro passado o Felipe e eu assistíamos ao programa Happy Hour, no GNT, cujo tema do dia era "meter o pé na jaca" no final de ano, ou seja: sobre os excessos alimentares nas festas de Natal e Ano Novo. Entre os convidados, a jornalista e escritora Sonia Hirsch, que há muito tempo tem um trabalho bastante conhecido sobre alimentação e saúde. Lá pelas tantas, Sonia, vegetariana durante anos e que voltou a comer carne, comentou que por causa disso agora era de novo "uma pessoa normal", e acrescentou que, como jornalista, e portanto "curiosa", não podia mesmo ficar restrita por uma dieta cheia de interdições.

Putz!

Sonia se tornou uma referência pra mim depois que li o seu Prato Feito, livrinho cuja primeira edição saiu em 1983, com receitas e dicas sobre alimentação (basicamente) vegetariana que comprei (já na terceira edição), segundo a anotação na folha de rosto, em 17 de dezembro de 1986. Nele, com o seu texto deliciosamente coloquial, ela fala sobre "não ser radical", "seguir a própria intuição" e, principalmente, "nós somos o que comemos". Explica os horrores do açúcar refinado, dos pesticidas agrícolas, dos problemas de hormônios & cia. na criação de animais para o abate e lembra que leite de vaca é coisa para bezerro, não para humanos. Em suma, defende a alimentação vegetariana, ainda que não repudie por completo o consumo de produtos de origem animal, pois entre as receitas estão incuídos: 1) sardinha, 2) camarão, 3) siri, 4) vongoli, 5) polvo, 6) cherne, 7) ovas de tainha, 8) paella, e mais duas receitas de ricota e quatro receitas com peito (porque a carne é menos irrigada) de frango (caipira, é claro). São portanto 14 receitas com ingredientes de origem animal, que ocupam seis das 53 páginas do livro dedicadas a elas. Para alguém cujos dentes sentem saudade de um bife, Sonia recomenda seitan (bife de glúten) e carne de soja.

Quer dizer: a concessão às receitas carnívoras não chega a lançar nenhuma dúvida sobre o foco principal do livro, os benefícios da alimentação vegetariana. Está na página 2:

"E o que mais? Ah, sim, os animais. Ora, deixe os bichinhos em paz. O quê? São bons demais? Bom então tá, se não tem jeito, tá feito. Nada de preconceito. Qual é o grilo? Não é grilo só não, é que assim que morrem começa a decomposição, então... Ao menos prefira a carne branca, aquela onde o sangue não estanca. Peixe fresco, galinha de quintal, ovo de pai e mãe, tudo em pequenas porções e com montões de verdura pra acompanhar. Quem come muita carne são os leões, os tigres, as panteras, as oncinhas que têm garras pra caçar e não entendem de cozinha."

Lá em 1986 eu lia isso e assinava embaixo. Sonia não comia carne, não era favorável ao consumo de carne, maaaaas entendia que, às vezes, "não tem jeito". Afinal, cuidados na alimentação dizem respeito a você e seu bem-estar, né não? Aí, tempos atrás a Cláudia comentou comigo: "Sabia que a Sonia Hirsch voltou a comer carne?" Não sabia e achei bem esquisito, mas entendi isso como uma flexibilização cabível. Sonia Hirsch é Sonia Hirsch, pô! Se ela não souber o que está fazendo com a própria alimentação, quem saberá?

No programa do GNT a história foi contada. Numa festa de Natal a que tinha sido convidada, ela foi colocar na mesa o prato que havia levado e viu, bem ali do lado, carne de porco. Não lembro se costela ou lombinho, mas era um prato pelo qual ela "era louca" antes de se tornar vegetariana. Aí, pensando no seu prazer e no seu bem-estar, decidiu voltar a comer carne. Porque, afinal, a gente não pode ficar preso a uma cartilha que determina que abramos mão de coisas das quais gostamos. Esse foi o argumento colocado, e a partir dele se entende que negar essa cartilha é, pelo visto, o que ela julga "ser normal".

Nem vou comentar sobre a não percepção da outra cartilha, a que determina que busquemos as coisas das quais gostamos ainda que isso custe a vida alheia, pois vou direto ao ponto que decorre daí: a deliciosa, tranqüilizadora e superior sensação de ser alguém normal. Pode até parecer, mas não foi uma piada com o sentido escorregadio e de saída problemático da palavra "normal". Não foi também apenas um lembrete engraçadinho e infeliz do quanto podemos nos tornar "radicais" ao seguir "ideologicamente" uma dieta, mas antes uma afirmação do quão fora da normalidade estão aqueles que não colocam seus prazeres em primeiro lugar. O clichezão pra lá de surrado: "a obrigação da gente é ser feliz".

Ahã.

Claro, relendo agora o Prato Feito para citá-lo neste post deu pra ver que essa concepção já estava lá, sempre esteve lá e é o mote que agora justifica a volta ao padrão onívoro. Se a vida é pra ser vivida, tratemos de curti-la ao máximo, com o máximo de saúde, o máximo de felicidade. Quem discordaria disso? A pequena concessão à carne nas receitas foi uma porta que nunca deixou de estar aberta, por isso não há nada de surpreendente no retorno de Sonia à sua própria normalidade... é só a "volta dos que não foram".

Defendo que cada um faça consigo o que bem entender, mas puxa: com um mínimo de informação já sabemos que ao escolher um comportamento (ou uma dieta) em vez de outro estamos escolhendo também o tipo e o quanto de impacto e sofrimento infligiremos aos outros seres e ao meio. Nem precisa ser jornalista ou curioso pra saber disso. Dá uma pena danada que mais de 20 anos trabalhando com afinco sobre o tema não tenha aberto para Sonia a porta-para-além-do-próprio-umbigo, mas o que realmente chateia é vê-la sucumbir à tentação dessa normalidade tão... "normal". Ela própria, nas vezes em que se expôs fora do gueto ipanemense dos anos 1970 e 1980, deve ter sentido na pele o que é ser considerado fora da normalidade da maioria bem-pensante. Mas agora a boa filha à casa torna, pela via segura do seu autocentramento. Automotivação. Auto-referência. E, mais triste que tudo, passando uma sensação de desistência. "Se não tem jeito, tá feito". A concessão de 1983 virou aconselhamento em 2007. Não mude. Não saia do lugar. Não coloque idéias novas pra interagir com as idéias velhas. Não olhe para além de suas pequenas preferências e necessidades individuais.

Mas e o coletivo? Bem, do coletivo fique apenas com sua face difusa e não ameaçadora, portanto não se detenha nas contradições que surgem, nas urgências que tiram o seu chão e nos problemas que insistem em gritar na sua cara. Não olhe pra isso. Olhe para a grande massa sem nome ao redor, veja só como você também faz parte dela. É tranqüilizador, não é? A vida de sempre, os hábitos de sempre, as soluções de sempre. O futuro a Deus pertence e o presente é tratar de garantir as satisfações mais imediatas. Pouca farinha, meu pirão primeiro! Ah... não há nada como viver ao máximo a felicidade de uma vida inteiramente normal... Alguém aí discorda disso?

[ a ilustração do post é de Norman Rockwell, Thanksgiving Dinner, 1943 (ou Freedom from Want), da série "Four Freedoms", feita para o Saturday Evening Post a partir de um discurso do presidente Franklin D. Roosevelt; Sonia Hirsch tem um site com informações sobre seus livros e alguns textos disponíveis, que você pode visitar aqui ]

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Adeus ano velho, feliz ano novo

Metade de janeiro, já. Será que ainda dá tempo de desejar feliz ano novo?

Pensando sobre o que postar, resolvi publicar meu balanço de fim de ano. Então lá vai.





o que fiz de realmente importante em 2007:
  • dei espaço para que as caídas de ficha do final de 2006 [ leia (ou releia) aqui ] seguissem naturalmente seu curso interno e operassem as mudanças externas no meu comportamento cotidiano
  • consumi menos
  • li e me informei mais

o que não fiz de realmente importante em 2007:
  • exercício físico

o que quero fazer de realmente importante em 2008:
  • óculos novos
  • injeção de B12
  • consumir menos
  • ler mais
  • exercício físico

A todos que andaram aqui pelo blog visitando e comentando (por escrito ou pessoalmente), meu superobrigado pela atenção e carinho. Valeu demais a troca de idéias, espantos e risadas.
No mais, desejo de coração que este ano seja bacaníssimo para todos os habitantes sencientes deste trepidante planeta: menos sofrimento e mais liberdade. E especialmente para nós, animais humanos: mais lucidez e compaixão, sempre.

Beijo grande e feliz 2008!