Este é um blog sobre direitos animais e veganismo, abordados a partir da experiência de quem não sabia quase nada a respeito até o dia em que.

domingo, 6 de julho de 2008

Louis Theroux, mezzo roto, mezzo esfarrapado

Assisti na última sexta-feira a um programa de Louis Theroux no GNT sobre caçadores e caçadas na África do Sul (Louis Theroux's African Hunting Holiday, 2008). Louis Theroux é um jornalista da BBC2 que faz imersões muito contundentes naquilo que ele próprio chama de "subculturas". Misturando os papéis de observador e participante dos rituais específicos de cada universo investigado, ele já mostrou a indústria pornográfica, os infomercials e o televangelismo, por exemplo. Eu sempre gostei de assistir. Vi a chamada uns dias antes e fiquei ligado e acabei esquecendo, mas na sexta-feira peguei o programa do início por pura sorte, enquanto zapeava atrás de alguma coisa interessante. Chamei o Felipe e ficamos os dois esperando para ver o que resultaria dessa imersão específica.

Sinopse: Louis Theroux vai à África do Sul, mais especificamente a fazendas de caça, onde acompanha os proprietários que criam animais selvagens e os turistas que estão ali para caçá-los, pagando a aventura de acordo com o animal abatido. Um porco-do-mato custa cerca de 250 dólares a cabeça, enquanto que animais maiores e mais raros, como o rinoceronte, podem chegar a 70 mil dólares americanos ou mais.

Alguns dados: essas fazendas costumavam ser locais ou de criação de gado ou de plantação. Diante da demanda cada vez maior, especialmente de norte-americanos, os proprietários migraram para a exploração da caça "selvagem". Reconstituíram o ambiente de savana e passaram a criar babuínos, gnus, girafas, zebras, leões e outras espécies com a finalidade específica de serem abatidas por caçadores ansiosos para levar um "troféu" para casa. Pense bem: quem não adoraria ter uma cabeça de rinoceronte ornamentando a parede da sala de estar?

Mais dados: um criador de leões mostra como os seus animais são bonitos, bem criados e sem cicatrizes, ao passo que numa caça convencional você levaria para casa a cabeça de um leão provavelmente todo estropiado. Vamos combinar, não há decoração que resista, né? Outra questão é o aproveitamento do tempo. Você poderia ficar uns três meses no Zimbábue, por exemplo, até conseguir caçar um animal que valesse a pena. Numa fazenda sul-africana, você pode matar cinco ou seis em um só dia, a tiro ou flechada. Uau.

Há tanto o que falar sobre isso tudo. O ambiente controlado. A vida como parque temático. A busca ensandecida por the real thing na exata medida em que é a confissão da perda da capacidade de conexão com qualquer coisa que possa, mesmo de longe, ser chamada de real. Enfim.

Mas vamos ficar com Louis Theroux e o programa em si. Que abre com um sujeito, dono de uma dessas fazendas, acompanhando a filha, uma loirinha fofa de seis ou sete anos, abatendo o seu primeiro troféu: um porco-do-mato que pastava desavisada e tranqüilamente a alguns poucos metros do abrigo-disfarce de onde a menina disparou, com precisão, mirando no tronco logo atrás da pata dianteira. Pulmão e coração atingidos, o pai congratula a menina diante do corpo morto e ensangüentado: "Belo tiro!"
É esse mesmo sujeito que, lá pela metade do programa, avisa a Louis Theroux sobre a inconsistência do seu choque a respeito dos animais que estão ali "apenas para serem mortos" diante da crueldade maior de qualquer abatedouro no manejo e morte da vaca cotidiana. Ele está certo, é claro, mas ao invés disso abrir uma brecha sobre o bife aparentemente inquestionável, acaba por pavimentar a estrada de Louis Theroux rumo à experiência de se tornar, ele próprio, um caçador. A conexão com aquele "eu interior" que não passa, você sabe, de um assassino tanto naturalizado quanto ancestral. (Ninguém lembra que os nossos ancestrais de verdade contavam com pouco mais do que as próprias mãos para caçar e que fazendas "cace-e-pague" são invenção recentíssima, mas quem se importa?)

Assim Louis Theroux se vê dentro de um abrigo, empunhando uma besta munida de mira telescópica, prestes a apertar o gatilho e matar o seu primeiro porco-do-mato. Tal e qual a menina de seis ou sete anos. A besta chega a ser armada, mas na hora H o repórter diz ao seu acompanhante caçador: "Não posso. Eu não tenho vontade de matar." O acompanhante o consola lembrando que está tudo bem, pois alguns de nós são caçadores, outros, não.

Ah, bom.

O programa termina com Louis Theroux, frouxamente, dizendo que come o bife, mas não consegue caçar. A pergunta óbvia (e que não é feita) seria "Por que isso acontece?", só que o esboço de reflexão logo se perde diante da menção ao fato "paradoxal" de um criador que praticamente "salvou" uma espécie da extinção ao criá-la extensivamente para a caça em fazendas... O falso paradoxo resume o tom do programa, cujos pontos levantados parece que sim, mas nunca chegam de fato a desafiar a noção dos animais como objetos. Tudo parte do fato de como esses objetos são tratados. A morte certeira e limpa numa fazenda de caça é mais honesta do que a morte torturante num abatedouro? É isso? É essa a questão?

Não: a questão é outra, e diz respeito à possibilidade, sempre presente e sistematicamente recusada, de simplesmente não matar, não abusar, não pretender possuir.

[ a imagem que ilustra o post foi retirada da página da BBC News com informações sobre o programa, que você acessa aqui ]

2 comentários:

g disse...

meu, vc mandou bem demais nesse texto.

Cleber disse...

Valeu, Gija, e obrigado pela visita: volte sempre!