Este é um blog sobre direitos animais e veganismo, abordados a partir da experiência de quem não sabia quase nada a respeito até o dia em que.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

O contorno

Fonte: http://zerohora.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default.jsp?uf=1&local=1&section=Geral&newsID=a2860022.xml

Vanderlei Pires, morador de Porto Alegre de 35 anos, dormia na rua na madrugada de hoje, 2 de abril, quando teve o corpo inteiro pintado com tinta spray prata. Ele só percebeu a agressão ao acordar, e ficou com a pele ardendo pelo contato com a tinta tóxica. Além disso, há uma testemunha que viu o motorista de um carro parar junto a Vanderlei, descer e urinar nas suas pernas, enquanto ria para o acompanhante que estava dentro do veículo. Segundo a testemunha, eram rapazes brancos e aparentavam ser de classe média alta. O caso foi notícia na TV e internet e segue agora sendo investigado pela polícia.

Assisti à notícia e lembrei imediatamente do índio pataxó Galdino Jesus dos Santos, queimado vivo em Brasília em 1997, enquanto dormia em uma parada de ônibus, por cinco jovens brancos de famílias influentes da cidade. Um dos assassinos chegou a declarar que o álcool foi jogado e o fogo ateado porque eles haviam confundido Galdino com um mendigo.

A gente sabe do quanto os humanos somos capazes de violências como essas, por isso a agressão em si não me espanta mais do que o contexto onde ela ocorre. Costumamos balizar nossos atos de violência com algumas variáveis – como os conceitos de guerra e inimigo, por exemplo – e acabamos por justificá-los como "necessários". A partir daí, seremos questionados apenas se outra lógica, que não reconhece nossa justificativa como válida, nos confrontar. Para Hitler, e uma nação que adoeceu praticamente inteira sob seu carisma, a necessidade de resgatar uma mítica Deutschland über alles forneceu o contorno que desenhou tanto a estética dos filmes de Leni Riefenstahl quanto o extermínio organizado dos campos de concentração. Mas ainda que nossa outra lógica não valide as justificativas nazistas, compreendemos as variáveis sucessivas sendo acionadas até que a necessidade da guerra total, acima de tudo e todos, se impusesse como um fato logicamente consumado. O nazismo é um desenho claro, de contornos nítidos, e por isso facilmente identificamos os focos de seu recrudescimento, ainda que disfarçados sob o desenho de outras cores e bandeiras.

Como não há justificativa evidente que possamos validar nas agressões a Vanderlei e Galdino, tentamos buscar o que fundamenta a ação dos agressores, e a princípio o que aparece diante de nós é um vazio desconcertante. A necessidade, se tanto, era a de se divertir. Babacas, pensamos, playboys idiotas, filhinhos-de-papai autocentrados, monstros sem noção. Mas se nem um dicionário inteiro de xingamentos parece dar conta do nosso espanto, finalmente nos resta perguntar: quais são e como se conjugam as variáveis que justificam a escolha dessa diversão e desses alvos em particular? Talvez o desconcerto se dê porque, afinal, a gente sabe a resposta. Conhecemos bem a lógica dessa falta absoluta de empatia. Ela não tem exatamente um nome nem deriva de um conjunto fechado e definido de valores. É difusa, mas o que tem de escorregadia, tem de aterradora. Sem um desenho preciso, um tamanho exato, ela frequenta livremente os lugares mais insuspeitos e as mentes mais desarmadas. Entretanto ela nos pertence, e temos o dever reconhecê-la, dar-lhe um nome, entender o seu alcance. É necessário enxergá-la. Pois hoje o seu contorno apareceu desenhado, nitidamente, numa calçada de Porto Alegre.