Este é um blog sobre direitos animais e veganismo, abordados a partir da experiência de quem não sabia quase nada a respeito até o dia em que.

sexta-feira, 2 de abril de 2010

O contorno

Fonte: http://zerohora.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default.jsp?uf=1&local=1&section=Geral&newsID=a2860022.xml

Vanderlei Pires, morador de Porto Alegre de 35 anos, dormia na rua na madrugada de hoje, 2 de abril, quando teve o corpo inteiro pintado com tinta spray prata. Ele só percebeu a agressão ao acordar, e ficou com a pele ardendo pelo contato com a tinta tóxica. Além disso, há uma testemunha que viu o motorista de um carro parar junto a Vanderlei, descer e urinar nas suas pernas, enquanto ria para o acompanhante que estava dentro do veículo. Segundo a testemunha, eram rapazes brancos e aparentavam ser de classe média alta. O caso foi notícia na TV e internet e segue agora sendo investigado pela polícia.

Assisti à notícia e lembrei imediatamente do índio pataxó Galdino Jesus dos Santos, queimado vivo em Brasília em 1997, enquanto dormia em uma parada de ônibus, por cinco jovens brancos de famílias influentes da cidade. Um dos assassinos chegou a declarar que o álcool foi jogado e o fogo ateado porque eles haviam confundido Galdino com um mendigo.

A gente sabe do quanto os humanos somos capazes de violências como essas, por isso a agressão em si não me espanta mais do que o contexto onde ela ocorre. Costumamos balizar nossos atos de violência com algumas variáveis – como os conceitos de guerra e inimigo, por exemplo – e acabamos por justificá-los como "necessários". A partir daí, seremos questionados apenas se outra lógica, que não reconhece nossa justificativa como válida, nos confrontar. Para Hitler, e uma nação que adoeceu praticamente inteira sob seu carisma, a necessidade de resgatar uma mítica Deutschland über alles forneceu o contorno que desenhou tanto a estética dos filmes de Leni Riefenstahl quanto o extermínio organizado dos campos de concentração. Mas ainda que nossa outra lógica não valide as justificativas nazistas, compreendemos as variáveis sucessivas sendo acionadas até que a necessidade da guerra total, acima de tudo e todos, se impusesse como um fato logicamente consumado. O nazismo é um desenho claro, de contornos nítidos, e por isso facilmente identificamos os focos de seu recrudescimento, ainda que disfarçados sob o desenho de outras cores e bandeiras.

Como não há justificativa evidente que possamos validar nas agressões a Vanderlei e Galdino, tentamos buscar o que fundamenta a ação dos agressores, e a princípio o que aparece diante de nós é um vazio desconcertante. A necessidade, se tanto, era a de se divertir. Babacas, pensamos, playboys idiotas, filhinhos-de-papai autocentrados, monstros sem noção. Mas se nem um dicionário inteiro de xingamentos parece dar conta do nosso espanto, finalmente nos resta perguntar: quais são e como se conjugam as variáveis que justificam a escolha dessa diversão e desses alvos em particular? Talvez o desconcerto se dê porque, afinal, a gente sabe a resposta. Conhecemos bem a lógica dessa falta absoluta de empatia. Ela não tem exatamente um nome nem deriva de um conjunto fechado e definido de valores. É difusa, mas o que tem de escorregadia, tem de aterradora. Sem um desenho preciso, um tamanho exato, ela frequenta livremente os lugares mais insuspeitos e as mentes mais desarmadas. Entretanto ela nos pertence, e temos o dever reconhecê-la, dar-lhe um nome, entender o seu alcance. É necessário enxergá-la. Pois hoje o seu contorno apareceu desenhado, nitidamente, numa calçada de Porto Alegre.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Crimes de uma tradição inventada


Fonte: www.clicrbs.com.br/rodadechimarrao – Foto: Antenor Tatsch Jr./ Especial ClicRBS
 
Cerca de três mil pessoas percorrem a cavalo o litoral do Rio Grande do Sul, de 19 a 27 de fevereiro, na 26ª edição da Cavalgada do Mar. Homens e mulheres montam trajados com a indumentária "típica" dos gaúchos. Ao longo do caminho fazem acampamentos em que louvam as lides da "tradição campeira", enquanto aguardam as festas e shows-bailes que ocorrem à noite. A cavalgada conta com patrocínio do governo do estado e apoio da Assembleia Legislativa, secretarias estaduais da Cultura e do Turismo, Coordenadoria Estadual da Mulher, OAB/RS, Tribunal de Justiça do RS, MTG (Movimento Tradicionalista Gaúcho), entre outros. Diz o fôlder promocional:

A Cavalgada do Mar
A primeira cavalgada foi realizada em 1984. Desde 1989, essa cavalgada vem sendo comandada por Vilmar Romera, tradicionalista e entusiasta do culto das nossas tradições campeiras.

Culto à Tradição
Por meio de cavalgadas e da prática de antigos costumes, podemos cultuar a tradição de nosso estado e introduzir os valores atrelados a este tipo de evento.

Então, pra quem não conhece muito bem qual é o esquema: trata-se de um bando de gente fantasiada de algo que nunca foi, tentando emular o comportamento de um sujeito típico que nunca existiu e honrando antigas tradições que só foram organizadas como tal há cerca de 60 anos. Durante o trajeto, os pobres cavalos sob o sol de fevereiro vão despejando toneladas de cocô nas praias em que veranistas de sunga e biquíni (ou seja, gente normal) assistem à passagem bizarra do desfile temático. Imagino que a sensação do desafortunado que quer apenas gozar as suas férias deve ser a de um portal espaço-temporal se abrindo e materializando um pampa mítico logo ali, atrás do castelo de areia que as crianças tentavam construir. E não, a cena grotesca infelizmente não é fruto daquela dose a mais de caipirinha, nem do sol deste verão batendo recordes de UVA e UVB. Eles existem e vêm se reproduzindo. Se autoproclamam guardiões das tradições gaúchas, o que quer que isso signifique. A mídia os adora e valoriza, eles sempre têm espaço para repetir um discurso vago em que as palavras sagradas "orgulho", "façanha", "heroico" e "tradição" se repetem hipnoticamente, vazias de qualquer sentido. Se organizam em movimentos, centros, confederações. Se defendem das críticas de gente lúcida afirmando o caráter "cultural" e "democrático" das suas agremiações e ajuntamentos, embora fique sempre no ar a desconfiança de que não sabem o que significa nem uma coisa nem outra. São homofóbicos, sexistas e racistas, mas juram provar o contrário porque admitem homossexuais, mulheres e negros em seu círculo. Desde que devidamente amansados, é claro.

Pois bem. Já no início desta edição da cavalgada, dois cavalos morreram, provavelmente de exaustão. Há relatos de que número agora chega a seis. O GAE está organizando uma manifestação pedindo o fim da cavalgada que deve se realizar hoje, dia 26, às 17 horas, em frente ao Palácio Piratini. A manifestação foi noticiada pelo jornalista Giovani Grizotti no blog Roda de Chimarrão, que escreve para o jornal Zero Hora. No mesmo post:
O comandante da Cavalgada do Mar, Vilmar Romera, afirma que há 12 anos não ocorria morte de cavalo na Cavalgada do Mar. Ele afirma que o evento não pode ser penalizado por atos isolados de alguns participantes. Romera compara o cavalo a um "atleta" que precisa de cuidados especiais antes de participar de uma competição:

-Se tu não cuidar, ele morre de stress. Tem gente que não prepara o cavalo antes da Cavalgada, disse Romera.

Sobre a manifestação dos ambientalistas, ele brinca:

-Mas o que é isso, querem acabar com uma tradição! É o fim da picada! Vamos agora largar as cavalgadas de mão e dançar no balé de Bolschoi!

O jornalista podia primeiro aprender a escrever Bolshoi, depois podia parar de tentar disfarçar como brincadeira o pensamento do comandante, tão cristalino que nem precisa ser comentado. Como afirma o fôlder, a cavalgada – e o movimento tradicionalista no seu todo – diz respeito sobretudo à celebração de valores. Aqui estamos muito longe de uma festa folclórica: este é um culto a uma figura que é tanto mítica quanto retrógrada. O gaúcho idealizado veste roupas do século XIX, é branco, heterossexual e sexista; doma cavalos, castra bezerros e tosquia ovelhas; come carne e bebe cachaça em quantidades épicas; é xenófobo e não conhece o diálogo, só um ensimesmamento do qual sai apenas para resolver suas diferenças na ponta da faca. Esse é o tipo constelado por eventos como a cavalgada, pairando como uma sombra a modelar os comportamentos daqueles que o veneram, com "orgulho de ser gaúcho". Essa gente tem apoio governamental, da mídia e de alguns setores da sociedade, pois a ideologia que representa serve, afinal, de um modo ou de outro, a vários senhores.

O gaúcho idealizado é honrado por muitos, mas sua figura em nada honra a vida democrática e culturalmente diversa desejada por outros tantos, e reais, gaúchos.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Não à tortura, não ao silêncio


A Associação Juízes para a Democracia organiza um abaixo-assinado ao Supremo Tribunal Federal com um manifesto pela não aplicação da Lei de Anistia aos torturadores da ditadura militar de 1964-1985, conforme arguição da OAB, nos seguinte termos:

"Eminentes Ministros do STF: está nas mãos dos senhores um julgamento de importância histórica para o futuro do Brasil como Estado Democrático de Direito, tendo em vista o julgamento da ADPF (Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental) nº 153, proposta em outubro de 2008 pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, que requer que a Corte Suprema interprete o artigo 1º da Lei da Anistia e declare que ela não se aplica aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra os seus opositores políticos, durante o regime militar, pois eles não cometeram crimes políticos e nem conexos.
Tortura, assassinato e desaparecimento forçado são crimes de lesa-humanidade, portanto não podem ser objeto de anistia ou auto-anistia. [...]"

A violência deve ser reconhecida para ser repudiada onde quer que se manifeste, especialmente quando disfarçada pelo hábito cego, justificada pelo injustificável ou amparada pela vagueza da lei.

O abaixo-assinado já conta com mais de 11 mil assinaturas. Assine também, aqui.


[ na ilustração do post, a cena do suposto "suicídio" do jornalista Vladimir Herzog, torturado e assassinado pelo DOI-Codi em 1975. (foto: Agência Estado) ]

sábado, 2 de janeiro de 2010

Adeus, Orkut


Encerrei minha conta no Orkut, um espaço no qual entrei com as minhas próprias perninhas e onde praticamente não fiz nada mais do que me atrapalhar com a sua utilização.

Em março de 2009 comecei a escrever uma postagem que pretendia, principalmente, dar um retorno a Mary Lys, que por causa do blog havia me convidado a participar de uma comunidade orkutiana para debater vegetarianismo/veganismo. Como em tudo mais com que travei contato no Orkut, não rolou. Mezzo pela minha incompatibilidade com o meio, mezzo pela dinâmica específica da comunidade.

Não consegui dar por terminado o texto da postagem e ela ficou guardada como rascunho, o que sempre me deixou contrariado porque eu realmente queria dar uma satisfação pública ao convite recebido. Então, conta no Orkut encerrada e dentro do espírito de "limpar as gavetas" para o ano novo, resolvi publicar o rascunho exatamente como ele ficou. Falta uma finalização, e no fundo é isso mesmo: é o melhor retrato da minha dificuldade com esse assunto.

Portanto, ao que importa: Mary Lys, obrigadíssimo, mas não consegui.



Debates vegetarianos

É o nome da comunidade no Orkut para a qual fui gentilmente convidado pela Mary Lys, na época moderadora lá (atualmente é a dona da comunidade).

Tenho uma dificuldade com o Orkut que já deveria ter resultado na eliminação do meu perfil há muito tempo: eu simplesmente não fico à vontade com o uso, deixo de checar recados, esqueço de entrar nas poucas comunidades em que estou inscrito... enfim, tem alguma coisa no formato que me afasta dele. Melhor seria apagar o perfil e ir fazer outra coisa, mas com uma pequena rede de amigos já estabelecida, acabo adiando a saída para mais adiante.

Aí a Mary Lys me convidou e eu me inscrevi na Debates Vegetarianos. O nome anterior da comunidade era "Pérolas Carniceiras", e pelo que entendi era uma resposta a uma outra comunidade, chamada "Pérolas Vegetarianas/Vegan", que se descreve assim: "Pq os vegans tem mania de disseminar tanta besteira e informações falsas pela internet? Se for por falta de informação, essa comunidade vai ajudar a desvendar tanta besteira postada por aí."

O esforço para mudar o nome (a dona anterior da comunidade não estava muito inclinada a fazê-lo) era consequência de um esforço maior, o de qualificar o debate. Além da atuação da Mary há os moderadores, e basta dar uma olhada rápida pelos tópicos para comprovar que o pessoal realmente trabalha muito lá. Enfim, o pacote completo: boa-vontade, dedicação, disponibilidade, empenho, motivação correta. Tudo no lugar certo.

Entrei a primeira vez, dei uma geral, saí. Entrei uma segunda vez, li mais coisas, os dedos começaram a coçar sobre o teclado, mas, antes de escrever, saí. E foi assim de novo, e depois de novo, e tem sido assim sempre. Tento, mas até agora não postei uma vírgula sequer. Amarelei total. Que coisa mais esquisita.

Há debatedores cativos por lá. E a esta altura já definidos com seus papéis e estilos de intervenção. O debate segue, mas de alguma maneira é como se não houvesse debate algum, e aqui me refiro especificamente às réplicas que os cativos fazem uns aos outros. A comunidade, no todo, é mais dinâmica do que as trocas entre esses veteranos, novas pessoas entram e se informam, tentam contribuir com um dado ou outro, normal. Mas é só você visitar um segundo tópico para encontrar de novo as mesmas quatro ou cinco pessoas, basicamente com os mesmos argumentos sendo repetidos. A moderação tem trabalho porque os ânimos com frequência se exaltam. Então dá uma sensação de circularidade: um assunto é proposto, aí replicado, depois vem a tréplica, os termos começam a ficar ásperos, os moderadores entram, a exaltação baixa e ficamos assim até que surja outro tópico.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2010

2010
















Feliz Ano Novo!

Que em 2010 possamos viver menos autocentrados e desenvolver mais consciência, mais sentido de responsabilidade e, sobretudo, mais compaixão. Por todos os seres.


[ sobre a ilustração: porcos são lembrados para a ceia de Ano Novo porque "fuçam para frente". Me permito acrescentar: especialmente se estiverem vivos e livres. (Imagem: Reuters) ]

sábado, 19 de dezembro de 2009

Revendo números


Matéria na Folha Online relata que um estudo do World Watch Institute sobre o impacto da pecuária no aquecimento global coloca os números do estudo anterior da FAO sobre o mesmo tema como "extremamente subestimados". Segundo seus autores, Robert Goodland e Jeff Anhang, todo o aparato relacionado à criação e consumo de animais e derivados na alimentação humana é responsável por nada menos que 51% das emissões de gases de efeito estufa.

A solução apontada pelo estudo para reverter essa situação é a substituição dos alimentos de origem animal pelos de origem vegetal. Aplicar métodos alternativos na criação de animais e produção de seus derivados não teria efeitos significativos.

Hmm... alguém falou a palavra "veganismo" aí?

Claro, veganismo pressupõe o entendimento da vida animal como merecedora da mesma consideração ética que temos (que devemos ter) pela vida humana. Portanto, ainda que os recursos do planeta fossem inesgotáveis (como parecem crer todos os que almejam uma curva sempre ascendente de crescimento econômico), ainda que os pastos fossem infinitos, ainda que o metano expelido pelos animais de criação não impactasse em nada o equilíbrio climático da Terra, ainda assim deveríamos nos tornar veganos. Devemos caminhar nesse sentido, por ética, por coerência, por compreensão, por obrigação: sermos a espécie mais poderosa implica responsabilidades que vão além do nosso bem-estar imediato. De qualquer maneira, ainda que pela via transversa da tentativa de salvarmos apenas nosso querido pescocinho, um mundo sem alimentação ou consumo de produtos de origem animal não só acaba salvando algumas vítimas do confinamento e do abatedouro, mas preserva um meio ambiente cuja integralidade é de interesse de todas as espécies.

Então, que sejam bem-vindos os vegetarianos ou veganos de última hora. Só não esqueçamos, uma vez garantido o abandono do bife, de lembrá-los de que ao passarmos por este planeta podemos, devemos, pensar mais além do próprio pescoço.


PS: essa situação me lembra os outros números relativos ao aquecimento global, que acabam sendo substituídos por números piores sempre antes do previsto. Algo me diz que quando chegarem os números corretos a água já vai estar batendo na bunda. Mas isso é porque eu sou otimista.

PS 2: é, estou um pouco amargo com o fracasso de Copenhague.



[ na ilustração, "A Grande Onda de Kanagawa", xilogravura de Katsushika Hokusai (entre 1829-1832); a matéria da Folha Online sobre o assunto você pode ver aqui; o pdf com o estudo do World Watch Institute você vê aqui; o da FAO já foi assunto de post anterior, aqui ]

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

terça-feira, 14 de julho de 2009

Os incríveis

Matéria do Jornal Nacional de ontem celebra o experimento, feito por cientistas americanos, de implante de um chip no cérebro de macacos que conseguiram mover um braço robótico "com a força do pensamento".

Veja aqui a reportagem, cujo tom empolgado com o incrível avanço científico acompanhou a cena compartilhada por milhões de espectadores.

O macaco está imobilizado, sedento, confinado num ambiente artificial, condenado a estar vivo para viver uma vida que não lhe pertence. O macaco é capaz de pensar, e exatamente por essa razão é escolhido e forçado a uma experiência que pouco se importa com o que ele pensa disso. O turbante improvisado que lhe colocaram, para esconder o crânio aberto dos estômagos mais sensíveis, é a cereja do bolo da cena horrorosa.

E então celebramos, pois somos incríveis. Somos realmente incríveis.

domingo, 1 de fevereiro de 2009

Da natureza não natural

Já comentei num post anterior a respeito das considerações de Pasolini sobre Jasão, no seu filme Medeia, em que o cineasta salienta a trajetória do personagem como a passagem da percepção mágica da natureza (e do mundo) para uma abordagem pragmática. Uma trajetória que é a da mentalidade ocidental. A civilização mesma como processo de afastamento do mágico, e isso é um pouco mais do que a simples tentativa de racionalização do mágico. Nossa história civilizatória tem sido a da alienação dos aspectos sagrados, inalcançáveis e autodeterminados daquilo que, quanto mais alienado, mais passa a parecer como realidade externa e independente, a Natureza em si. Se foi pela cultura que atribuímos magia à realidade, foi também pela cultura que acabamos atribuindo naturalidade à natureza, e de tal maneira que esta passou a ser considerada a tabula rasa, um mero cenário a partir do qual e sobre o qual atuar, um ajuntamento de dados factuais que constituem a realidade física.

A ideia de um "estado natural" de qualidades neutras, preexistente e pré-cultural, sobre o qual podemos construir nosso pensamento é, de saída, um equívoco. Fora da cultura, a natureza é continuidade, e não recorte observável, nem cenário possível. Dentro da cultura, toda natureza será necessariamente concebida sob limitações culturais.

É incrível que a evocação de uma natureza anterior a toda cultura às vezes seja justamente a arma escolhida para defender expressões da própria cultura. Assim, é lugar-comum, por exemplo, você ouvir argumentos científicos que buscam provar que o homem é naturalmente onívoro (querendo mesmo defender que é carnívoro). E também outros tantos tentando provar o contrário. Aí temos o quadro engraçadíssimo do sujeito que estufa o peito cheio de razão e se prepara para traçar sua picanha, repare bem, uma vez que afirma culturalmente que não come culturalmente, apenas segue a natureza. Para ele, obter nutrientes da carne de vaca é uma bem-vinda condenação biológica. Exibe, convencido, seus caninos como a prova irrefutável disso. A natureza, é claro, não o manda comer ninguém da sua espécie, ou cachorros, ou cobras, ou porquinhos-da-índia. A natureza deixou essa parte para selvagens canibais perdidos nas brumas do tempo e alguns povos exóticos do Oriente ou dos Andes. Numa diferenciação que há de ser evolutiva, valha-nos Darwin, a natureza — e só ela, estamos acertados — adaptou nosso picanheiro a alimentar-se em churrascarias-rodízio. Pretendendo-se alheio a qualquer cultura nessa hora de pulsão alvoroçada de seus genes, ele pergunta, por puro instinto, ao garçom: "Tem javali?"

Pena que nosso amigo esqueceu-se de lembrar que caninos não são necessários quando se come carne de garfo e faca. No seu oposto, talvez encontremos uma gentil criatura vociferando que não podemos em absoluto comer nenhuma carne por causa do comprimento dos nossos intestinos. Sejamos justos: eis aqui um argumento de peso equivalente ao canino de qualquer um. Mas, cá entre nós, acho mesmo que, noves fora, nesse caso os talheres são evidência antropológica do que somos e como agimos muito mais importante do que a conformação dos nossos dentes ou intestinos.

[ na ilustração, garfo e faca da Tramontina, linha "Churrasco – Tradicional", mas que, tenho certeza, você pode usar para comer qualquer outro tipo de coisa, naturalmente ]

domingo, 18 de janeiro de 2009

Um herói contemporâneo

Assisti incrédulo à matéria do Jornal da Globo do último dia 15 sobre o pouso de emergência do airbus da US Airways no rio Hudson, em Nova Iorque. Siga o link e confira o vídeo: são exatos 6 min 42 s, dos quais os últimos 2 min e quase 20 s são dedicados integralmente a destacar o heroísmo do piloto. Esse tempo foi recheado dos seguintes termos: "competência", "habilidade do profissional", "currículo", "homem ideal", "performance", "alta performance", "empresa", "empreendorismo", entre outros. "Heroico" e "herói" aparecem quatro vezes ao longo da matéria.

Conforme os minutos passavam e o assunto não saía do lugar, fui me sentindo mais e mais deslocado daquilo tudo, da abordagem, da excitação com o fato, do vocabulário utilizado. Com a menção a "currículo" percebi que havia algo realmente fora do tom. William Waack conversava com o correspondente Rodrigo Alvarez e ambos diziam ter consultado o currículo do piloto. Dezenove mil horas de voo. Foi piloto de caças. Foi presidente da Associação dos Pilotos de Linhas Aéreas (ohhhhhhh...). Tem uma empresa especializada em segurança aérea. Enfim, o homem certo na situação certa. E então veio o comentário de que a empresa do piloto, com sede na Califórnia, terra do "empreendorismo", agora iria certamente "bombar".

Hein?

Se a busca da raiz do alegado heroísmo do sujeito no seu currículo já parecera estranha o suficiente, a previsão de sucesso empresarial como decorrência do pouso bem-sucedido coroou de vez o que percebi como uma bizarra manobra: as qualidades do herói foram deslocadas da esfera da moral para a da performance.

Mas agora me diz: o que a palavra "herói" evoca em você?

Aqui cá comigo, as primeiras associações são: "coragem", "risco" e, sobretudo, "sacrifício". Mestre Houaiss me ajuda, acrescentando "tenacidade", "abnegação", "magnanimidade" e "indivíduo [...] que arrisca a vida em benefício de outrem". E, por último, "indivíduo [...] notabilizado por suas realizações/que desperta enorme admiração; ídolo".

Acho que não erro e mesmo faço apenas chover no molhado ao entender a sociedade estadunidense como mais idólatra que a brasileira. O elogio permanente ao indivíduo "que faz" é uma característica bastante evidente por lá, então a associação entre "ídolo" e "herói" é pelo menos previsível em se tratando dos Estados Unidos. E tem também o impacto emocional daquilo que acontece no quintal da sua casa, colorindo adjetivos e mobilizando admirações. Quero dizer que não me espantaria se em vez do Jornal da Globo estivesse assistindo à CNN. Só para comparar, olha o que diz, por exemplo, o Le Monde:

"A foto do piloto, Chesley Sullenberger, de 57 anos, foi divulgada repetidamente nas redes de televisão americanas, e o prefeito de Nova Iorque louvou seu heroísmo e seu profissionalismo. [...] O presidente americano George W. Bush por sua vez louvou 'a habilidade e o heroísmo da tripulação'. Segundo o New York Daily News, que deu a manchete 'Os heróis do Hudson' no seu site, o homem é um veterano da Força Aérea americana."

Ou seja, o jornal reporta a atribuição de heroísmo pela população local, mas não fica endossando essa atribuição. O que me parece muitíssimo mais adequado do que a longa matéria do Jornal da Globo, que nada mais fez a não ser ecoar sem qualquer filtragem a mídia estadunidense, como se o pouso de emergência tivesse ocorrido no Tietê, com Lili Marinho a bordo... Acompanhei com atenção o Jornal Hoje, da mesma Globo, do dia seguinte só pra confirmar idêntica postura editorial. Com nenhum morto e quatro atendimentos hospitalares somente por hipotermia e não pelo pouso em si, foi o "heroísmo competente" do piloto que pautou as duas matérias (aqui e aqui), novamente ultrapassando, juntas, os 6 min. Se é assim com a principal rede de televisão do país, tenho certeza que esse episódio vai virar um "case de sucesso" nas palestras motivacionais sobre administração e gerenciamento por aí. Alguém tem uma máscara de oxigênio extra, por favor?

Devo estar velho, mais chato e ranzinza do que de costume, mas um piloto altamente treinado em situações de emergência que acaba por colocar em prática todo o seu treinamento não me faz levantar as sobrancelhas. O cara foi craque, foi fera, foi braço, sim. É o primeiro pouso de emergência na água em 50 anos sem nenhuma vítima. Que bom que o treinamento, que a especialização do piloto pôde dar conta da situação de alto risco e salvar 155 vidas. Técnica apurada, perícia, sangue frio. Uhu. Mas sou do tempo em que alta performance e currículo adequado não eram os ingredientes básicos daquilo que reconhecemos como heroísmo, então só consigo achar tudo isso muito fora de lugar. Deslocam-se as qualidades do herói, desloco-me para um estado em suspensão, assistindo a tudo sem conseguir acreditar que é essa a língua que está sendo falada. Ando também mais sensível, pois a situação em Gaza é o cenário dos últimos tempos do qual não consigo me afastar, e a partir de onde olho para as coisas cotidianas e só me sobra o espanto ao assistir a bizarrices como as do Jornal da Globo. Que, por sinal, nessa mesma edição dedicou 3 min 1 s à matéria que cobriu o bombardeio israelense às instalações da ONU, de um hospital e dos locais onde trabalhava a imprensa em Gaza. Menos da metade do tempo utilizado para cobrir o pouso forçado no Hudson. E de um jornalismo tão vagabundo que esses 3 min não valem 10 s de informação consistente.


[ a imagem é a estampa da camiseta "Cher Guevara"; só pra constar: apesar de velho, chato e ranzinza, eu morri de rir outro dia quando topei por acaso com ela na Internet ]