Este é um blog sobre direitos animais e veganismo, abordados a partir da experiência de quem não sabia quase nada a respeito até o dia em que.

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

Crimes de uma tradição inventada


Fonte: www.clicrbs.com.br/rodadechimarrao – Foto: Antenor Tatsch Jr./ Especial ClicRBS
 
Cerca de três mil pessoas percorrem a cavalo o litoral do Rio Grande do Sul, de 19 a 27 de fevereiro, na 26ª edição da Cavalgada do Mar. Homens e mulheres montam trajados com a indumentária "típica" dos gaúchos. Ao longo do caminho fazem acampamentos em que louvam as lides da "tradição campeira", enquanto aguardam as festas e shows-bailes que ocorrem à noite. A cavalgada conta com patrocínio do governo do estado e apoio da Assembleia Legislativa, secretarias estaduais da Cultura e do Turismo, Coordenadoria Estadual da Mulher, OAB/RS, Tribunal de Justiça do RS, MTG (Movimento Tradicionalista Gaúcho), entre outros. Diz o fôlder promocional:

A Cavalgada do Mar
A primeira cavalgada foi realizada em 1984. Desde 1989, essa cavalgada vem sendo comandada por Vilmar Romera, tradicionalista e entusiasta do culto das nossas tradições campeiras.

Culto à Tradição
Por meio de cavalgadas e da prática de antigos costumes, podemos cultuar a tradição de nosso estado e introduzir os valores atrelados a este tipo de evento.

Então, pra quem não conhece muito bem qual é o esquema: trata-se de um bando de gente fantasiada de algo que nunca foi, tentando emular o comportamento de um sujeito típico que nunca existiu e honrando antigas tradições que só foram organizadas como tal há cerca de 60 anos. Durante o trajeto, os pobres cavalos sob o sol de fevereiro vão despejando toneladas de cocô nas praias em que veranistas de sunga e biquíni (ou seja, gente normal) assistem à passagem bizarra do desfile temático. Imagino que a sensação do desafortunado que quer apenas gozar as suas férias deve ser a de um portal espaço-temporal se abrindo e materializando um pampa mítico logo ali, atrás do castelo de areia que as crianças tentavam construir. E não, a cena grotesca infelizmente não é fruto daquela dose a mais de caipirinha, nem do sol deste verão batendo recordes de UVA e UVB. Eles existem e vêm se reproduzindo. Se autoproclamam guardiões das tradições gaúchas, o que quer que isso signifique. A mídia os adora e valoriza, eles sempre têm espaço para repetir um discurso vago em que as palavras sagradas "orgulho", "façanha", "heroico" e "tradição" se repetem hipnoticamente, vazias de qualquer sentido. Se organizam em movimentos, centros, confederações. Se defendem das críticas de gente lúcida afirmando o caráter "cultural" e "democrático" das suas agremiações e ajuntamentos, embora fique sempre no ar a desconfiança de que não sabem o que significa nem uma coisa nem outra. São homofóbicos, sexistas e racistas, mas juram provar o contrário porque admitem homossexuais, mulheres e negros em seu círculo. Desde que devidamente amansados, é claro.

Pois bem. Já no início desta edição da cavalgada, dois cavalos morreram, provavelmente de exaustão. Há relatos de que número agora chega a seis. O GAE está organizando uma manifestação pedindo o fim da cavalgada que deve se realizar hoje, dia 26, às 17 horas, em frente ao Palácio Piratini. A manifestação foi noticiada pelo jornalista Giovani Grizotti no blog Roda de Chimarrão, que escreve para o jornal Zero Hora. No mesmo post:
O comandante da Cavalgada do Mar, Vilmar Romera, afirma que há 12 anos não ocorria morte de cavalo na Cavalgada do Mar. Ele afirma que o evento não pode ser penalizado por atos isolados de alguns participantes. Romera compara o cavalo a um "atleta" que precisa de cuidados especiais antes de participar de uma competição:

-Se tu não cuidar, ele morre de stress. Tem gente que não prepara o cavalo antes da Cavalgada, disse Romera.

Sobre a manifestação dos ambientalistas, ele brinca:

-Mas o que é isso, querem acabar com uma tradição! É o fim da picada! Vamos agora largar as cavalgadas de mão e dançar no balé de Bolschoi!

O jornalista podia primeiro aprender a escrever Bolshoi, depois podia parar de tentar disfarçar como brincadeira o pensamento do comandante, tão cristalino que nem precisa ser comentado. Como afirma o fôlder, a cavalgada – e o movimento tradicionalista no seu todo – diz respeito sobretudo à celebração de valores. Aqui estamos muito longe de uma festa folclórica: este é um culto a uma figura que é tanto mítica quanto retrógrada. O gaúcho idealizado veste roupas do século XIX, é branco, heterossexual e sexista; doma cavalos, castra bezerros e tosquia ovelhas; come carne e bebe cachaça em quantidades épicas; é xenófobo e não conhece o diálogo, só um ensimesmamento do qual sai apenas para resolver suas diferenças na ponta da faca. Esse é o tipo constelado por eventos como a cavalgada, pairando como uma sombra a modelar os comportamentos daqueles que o veneram, com "orgulho de ser gaúcho". Essa gente tem apoio governamental, da mídia e de alguns setores da sociedade, pois a ideologia que representa serve, afinal, de um modo ou de outro, a vários senhores.

O gaúcho idealizado é honrado por muitos, mas sua figura em nada honra a vida democrática e culturalmente diversa desejada por outros tantos, e reais, gaúchos.