Este é um blog sobre direitos animais e veganismo, abordados a partir da experiência de quem não sabia quase nada a respeito até o dia em que.

sábado, 12 de abril de 2008

Explícito implícito

Descobri outro dia no site de Gary Francione que estão disponíveis versões em português dos vídeos dele. Na realidade são slides de texto e imagem em forma de vídeo. O primeiro, Teoria dos direitos animais, dá uma geral e introduz o assunto. Não há sequer trilha sonora e as imagens são poucas, e me chamou a atenção a falta de imagens "chocantes". Há cenas de animais mortos ou feridos, mas uma foto de jornal ilustrando alguma matéria sobre produção pecuária corre o risco de ser mais perturbadora. Gostei. Imediatamente me deu vontade de apresentar o vídeo pra todo mundo. Hoje enviei um e-mail para os amigos queridos dando o link até o vídeo e explicando do que se tratava, e explicitamente avisando de que ninguém seria submetido a um "show de horrores" caso se dispusesse a assistir. Quer dizer: eu sou absolutamente a favor do show de horrores. Assisti a Terráqueos e sei o quanto a crueza de todas aquelas cenas ajudou na minha mobilização imediata com o assunto (mas falo sobre isso em seguida). E acho importante salientar que qualquer diferença dessa natureza na abordagem do tema há de se dar num nível bastante superficial. Uma imagem ou duzentos e cinqüenta? Com ou sem sangue? Isso tudo é irrelevante uma vez que se tenha realmente começado a enfrentar a questão, mas, antes que esse momento aconteça, a abordagem "menos chocante" dos direitos animais me parece uma boa alternativa para alcançar aquelas pessoas que sabem o tanto de horror que está necessariamente implicado nesse tema. As pessoas que, exatamente por causa disso, não querem mais saber. Ou saber "mais" do que já sabem. O dado explícito e chocante das imagens (ou da descrição textual pormenorizada) acaba servindo de justificativa para o afastamento total do debate, e falo aqui principalmente do debate consigo mesmo. É a hora de dar stop no player, a hora de fechar o livro, a hora de amassar o panfleto. "Vamos mudar de assunto?" Uma pena, pois quando alguém se recusa a pensar sobre isso nesses termos está se recusando a debater o assunto de qualquer maneira, pois não há como alienar esses termos da discussão. Seria mais ou menos como tentar discutir o Holocausto sem passar pelo terror dos campos de concentração, ou debater os problemas por que passa a população afro-descendente do Brasil deixando de lado tudo o que aconteceu antes de 13 de maio de 1888.
"Quem precisa saber das condições enfrentadas nos navios negreiros, por exemplo? Vamos mudar de assunto?"

Não. Nossa consciência nos diz: precisamos de todo detalhe sobre os navios negreiros e as senzalas, toda descrição macabra sobre os guetos e os campos. A fatura desse enfrentamento deve ser debitada na conta de todos nós. Esse assunto é nosso, gostemos ou não. Por isso me sinto bastante afortunado pela oportunidade de ter assistido a Terráqueos. Por ter sido confrontado com o que é também da minha conta. Foi importante ter conseguido não desviar o olho uma vez sequer, e eu quis fazer isso várias vezes. O dedo coçava pra apertar o stop no controle remoto. Mas tratei de agüentar no osso, porque aquilo me dizia respeito. Não olhar para aquelas cenas seria proceder a mais uma violência contra as vítimas que aparecem no filme. Ignorar seu sofrimento seria matá-las uma vez mais. Por fim ficou claro que meu estômago embrulhado, minha culpa, meu horror não eram nada, rigorosamente n-a-d-a diante do que cada um daqueles seres passou. Num jogo de forças em que trezentas emoções conflitantes brigam dentro de você, o que acabou prevalecendo foi um sentimento básico de acatar a responsabilidade por aquelas cenas, e esse foi o ponto exato que detonou toda a transformação posterior.

Aí, pra colocar a imagem no post anterior a este fui obrigado a rever o filme justamente na parte em que eu mais quis fugir dele. A pior cena, a mais terrível pra mim. Tanto, que não conseguia sequer falar sobre ela. Eu só conseguia dizer "tem uma parte...". Fiquei assim por semanas, meses até. Que nada: um ano e quatro meses. Só consegui verbalizar a frase "a cena da raposa" quando comentei com o Felipe sobre a ilustração que iria colocar no post. Como para ele tudo ocorreu de maneira muito parecida, até então éramos dois imbecis falando sobre esse momento particular do filme:

— É que naquela hora.
— Pois é.
— Não dá nem pra falar, né?
— É.
— Pois é.

O blog não tem como característica o uso dessas imagens terríveis. Mas no último post eu achei que precisava colocar a raposa. E tive de ir buscá-la no filme. Pra achar um frame adequado, revi e revi a cena que tanto me doera. Doeu de novo, é claro, mas dessa vez percebi uma relação diferente com a dor, e que agora me parece difícil colocar em palavras. Um outro entendimento, talvez, a partir da sensação de que, num mundo especista e cheio de contradições a respeito, o enfrentamento dessa dor não é apenas previsível. Ele é, realmente, necessário.

[ para ir direto aos vídeos no site de Gary Francione, clique aqui (e veja se você não fica com vontade de também mandar o link para os seus amigos...); a ilustração do post foi retirada da cena menos explícita de A lista de Schindler, filme de Steven Spielberg de 1993 ]

3 comentários:

Andréa disse...

Eu queria mesmo "conversar" sobre isso: a imagens fortes. Fico sempre dividida, porque sei que são essas imagens que fazem as pessoas tomarem aquele tapa, pensarem seriamente no assunto. Mas como sou super impressionável quando se trata de animais (e nunca precisei de imagens pra me tornar vegana, apenas de informações), pessoalmente não gosto e geralmente tento não colocar imagens muito chocantes lá no blog ou nos emails para os amigos e família. Mas sei sim da importância que é mostrar esses absurdos que muita gente prefere não ver. Tem que ver sim. Eles têm que encarar, tomar responsabilidade pelo que estão colaborando e ajudando a perpetuar, infelizmente.

Vou dar uma olhada nesse link. Valeu a dica!

Cleber disse...

Andréa, é de ficar dividido sim, e você colocou superbem: as imagens fortes não são pré-requisito para transformar ninguém. Viram veganos aqueles que conectam entendimento com comportamento, e imagem nenhuma pode garantir isso, né?

Não acho correto forçar ninguém a entrar num trem-fantasma. Ao mesmo tempo, já me vi em várias situações "poupando" as pessoas daquilo que lhes diz respeito. E não são só as imagens: escolher um adjetivo em vez de outro pode desandar uma conversa até então civilizada...

E então? Devemos "poupar" ou "estarrecer" as pessoas? Já que a nossa decisão vai ser sempre arbitrária, acho que o mais justo é considerar imagens chocantes e não chocantes como igualmente disponíveis, e que, em princípio, devem ser mostradas a todos, pois a todos dizem respeito. Conforme o rumo da prosa, vamos escolhendo desse repertório comum a melhor palavra, a melhor ilustração pro que a gente quer dizer. No caso de uma atividade explicitamente militante, é fundamental garantir que quem se sinta muito incomodado possa sair da sala, ou apertar o stop no controle remoto, mas sem deixar de garantir também que aquele teimoso que insiste que "não é tão terrível assim" possa, antes de sair correndo, dar uma espiada na crueldade de uma realidade que ele julga já conhecer. A negação precisa de um susto. Nem que seja naquele segundinho entre a primeira piscada e o dedo no botão do stop.

Esse assunto dá pano pra muita manga, né? Obrigadíssimo pelo ótimo comentário!

Me conta depois o que você achou dos vídeos do Francione ;)

Elaine disse...

Excelente post, Cleber!

Assisti um dos vídeos do Gary Francione e devo confessar que por mais que essas cenas me sejam "familiares", sempre que me deparo com elas, é inevitável o choque e a indignação diante de tanta crueldade e injustiça com os animais. Acabo em prantos e com uma sensação horrível de impotência.

Vou assistir os outros vídeos e certamente mandarei para amigos e familiares. Obrigada pela dica!

Abraço!