Felipe e eu estávamos anteontem no final da manhã esperando ônibus numa grande avenida da cidade. O calor, a poluição e o ruído excessivo tinham me colocado rapidamente em profundo desconforto físico. Lamentava não ter um carro e resolver a tarefa simples de comprar material de ferragem sem precisar ficar ali à espera. Esse material era para finalizar um trabalho doméstico que estava por trás do principal motivo do meu desconforto: poucos dias antes, para instalar prateleiras em casa, tive de fazer exatos 24 furos numa parede que se mostrou mais resistente do que prometia. Foram alguns bons minutos ininterruptos com a furadeira em modo "impacto". Quando acabei, meu ouvido direito zumbia e apitava como se recém-saído de um show de rock, daqueles em que você fica muito perto de alguma caixa acústica. Nada que uma boa noite de sono não resolva, pensei. Mas o dia seguinte começou com o meu primeiro lampejo de consciência já detectando: o zumbido-apito ainda estava lá, e tão forte como antes. Well...
A Internet me esclareceu o termo médico: tinnitus. Pode ser causado por doença ou por trauma. A partir de 85 decibéis os ruídos começam a causar algum estrago à audição. Uma furadeira pode chegar a 105 decibéis. A extensão do dano vai depender da sensibilidade do indivíduo, da intensidade do ruído, do tempo de exposição a ele e também do quanto o ouvido já foi afetado em ocasiões anteriores. O tempo necessário à recuperação aumenta a cada novo trauma. Às vezes, o tamanho do trauma ou a sua repetição tornam o tinnitus permanente. Uns 17% da população mundial têm de conviver com um ruído de algum tipo que está lá, dentro da cabeça, e do qual não se pode escapar. Não há como saber se o tinnitus vai sumir ou não a não ser esperando pra ver. Pode durar dias, mas, pelo que li, em geral deve desaparecer em até 24 horas em 90% dos casos, chegando até 48 horas os outros 10%.
Meu primeiro dia pós-trauma foi um inferno de assombrações me dizendo que estava condenado àquele incômodo para o resto da vida. Quando fecharam as 24 horas eu comecei a ter a impressão de que alguma diferença estava ocorrendo conforme eu protegia ou não o ouvido de qualquer ruído. Apostei nisso e o vedei o quanto pude com algodão, mas arrasado pela desconfiança de que a impressão talvez não passasse mesmo de apenas uma impressão. Enfim, foi só do segundo para o terceiro dia que tive certeza: o ouvido estava, aos poucos, se recuperando.
Esperando por aquele ônibus, agora muito sensível às agressões acústicas causadas pelo trânsito de uma cidade grande, eu pensava na falta de um carro e na minha recente e perigosa aproximação à situação de condenado eterno a um desconforto do qual não se pode escapar. Já imaginou? Nunca mais a sensação de poder descansar no silêncio, ou seja, nunca mais descansar. Para sempre sem saída, como um enterrado vivo. Um horror.
O ônibus demorava. Calor, poluição, ruído. A falta de um carro, e eu tão desconfortável e justificado por quase ter me estropiado para o resto da vida que, ao lembrar que por outro lado isso significava também um carro a menos nas ruas, pensei: "Dane-se!". Naquele momento de imersão autocentrada, o que havia em mim de generosidade e solidariedade estava reduzido a quase zero. Até que saí do meu transe umbilical quando ouvi o Felipe dizendo "Oh!". Me virei e vi: descendo a avenida, um cavalo com uma carroça presa às suas costas lutava para não cair, as patas fugindo ao controle. Muito magro e visivelmente fraco, as ferraduras eram armadilhas no asfalto escorregadio, com todo o peso da carroça o empurrando ladeira abaixo. O sinal fechou e não foi fácil parar a tempo. Triste cena urbana porto-alegrense no início do século 21: um homem e uma mulher numa carroça, na avenida movimentadíssima, puxada por um cavalo fraco, provavelmente doente e desnutrido, à beira de tombar de exaustão, de dificuldade, de impossibilidade de prosseguir.
Imediatamente me conectei com o peso nas costas. O ângulo de visão restringido. O caminhar escorregadio e a relação direta com o solo definitivamente comprometida pelo metal estranho ao corpo. Metal também na boca, onde se sentem as tensões das rédeas puxadas. A fraqueza tomando conta dos membros. O ruído excessivo e constante do trânsito, o cheiro agressivo da poluição. Todos os sentidos ali, presentes num organismo vivo e complexo, e todos eles condenados a um estresse constante. Não se trata de um trauma temporário, portanto não há o que esperar. O amanhã será a repetição agoniante do hoje. Enquanto forem mantidos como regra seu status de propriedade, a crueldade talvez ignorante dos que se pretendem seus donos e a indiferença de todos nós outros, é certo que o cavalo será usado até acabar, como um objeto, e até acabar será esse inferno. Fosse um ser livre, ele teria autonomia para preencher a vida de experiências trazidas por sentidos também livres. Mas não é o caso. Quanto a mim, devidamente arrancado da minha bolha de autocentramento pela cena triste e injustificável, olhei e vi minhas assombrações recentes plenamente consumadas na vida miserável daquele cavalo. Para sempre sem saída.
O horror. O horror. O horror.
Este é um blog sobre direitos animais e veganismo, abordados a partir da experiência de quem não sabia quase nada a respeito até o dia em que.
sexta-feira, 7 de março de 2008
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Um comentário:
1 ano se passou e o barulho infernal na minha cabeça permanece...como vc mesmo falou...O Horror..o Horror de Konsalik....
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