
Da leitura, feita num só fôlego, saí com a sensação muito concreta da enorme assimetria entre a defesa do direito ao bife e a defesa do direito do boi. Os argumentos colocados tão didaticamente lado a lado fazem a delícia de quem aprecia exercícios lógicos, mas fazem mais: redundam, por diversos caminhos, a divergência básica das motivações que estão por trás de uma e outra posição. A questão-chave colocada pelo ativismo dos direitos animais é bastante enxuta: a afirmação de que devemos incluir os animais não-humanos no círculo da comunidade moral atualmente contemplada pelas nossas preocupações éticas. Quem defende o direito ao bife responde a isso dizendo: "Não."
Claro, você sabe e eu sei que a maior parte das pessoas que defendem seu bife não se acredita deliberadamente vetando considerações de cunho ético sobre o boi. Talvez porque não haja consciência de que uma coisa está implicada na outra, e um bom exemplo recorrente é a revolta espontânea contra maus-tratos sofridos pelos animais. Recentemente a mídia nacional reproduziu a reportagem do Jornal do Almoço, um dos programas de TV mais antigos e mais vistos no Rio Grande do Sul, sobre as "corridas de bois de canga" na fazenda do pai do prefeito de Vale Verde, interior do estado. A começar pelas apresentadoras do programa, todos se mostraram "chocados" porque os bois (na verdade, touros), durante a competição em que ficavam presos à canga, além de tudo eram cutucados com uma vara que tinha pregos na ponta. A matéria da TV mostrou com nitidez um fiapo de sangue escorrendo do corpo de um deles. Bom, só de lembrar que a maioria dos gaúchos assistiu a essa reportagem enquanto almoçava provavelmente alguma comida à base de carne, é de causar espanto que alguém tenha se espantado... Um fio de sangue e o uso dos animais para jogatina são ocorrências mais que suficientes para condenar a todos os envolvidos nessa crueldade, mas de onde vem e por qual processo as pessoas imaginam que o bife se materializa nos seus pratos?
Não precisamos de varas com pregos, o bife cotidiano já é a negação do visto de entrada do boi na comunidade moral; a partir disso, qualquer consternação pelos maus-tratos sofridos pelo animal vai ser necessariamente fruto de ignorância, incoerência ou cinismo. Diz Naconecy:
"Nós pressentimos os inconvenientes que uma ética para os animais traria para nossos interesses, uma vez que, obviamente, os interesses dos membros de qualquer grupo são mais bem atendidos mantendo o tamanho desse grupo reduzido."
O autor segue citando Dale Jamieson:
"Quanto maior for a participação na comunidade dos iguais, menores serão os benefícios que recebem seus membros. Essa é, em parte, a razão pela qual tem havido uma resistência histórica à ampliação do círculo da preocupação moral. As elites da sociedade têm resistido à reclamação de igualdade por parte das classes inferiores; os homens têm resistido às reclamações das mulheres, e os brancos têm oferecido resistência às reivindicações dos negros. A perda de vantagens injustas é parte do custo da vida em uma sociedade moralmente bem-ordenada, mas é típico que os que têm que pagar por esse custo tratem de evitá-lo."
Eis a assimetria: os discursos da defesa do bife e da defesa do boi falam fundamentalmente sobre como devemos nos comportar, mas enquanto a motivação deste último se baseia na ampliação da visão que passa a enxergar no boi um Outro, os que defendem seu bife estão apenas fazendo isso mesmo: tratando de garantir "o seu", não importa o quanto levantem as sobrancelhas diante de uma matéria chocante na TV em plena hora do almoço.
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