Este é um blog sobre direitos animais e veganismo, abordados a partir da experiência de quem não sabia quase nada a respeito até o dia em que.

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Deslocar para não sair do lugar


Recebi um e-mail da Lut repassando a notícia de que um artista plástico costa-riquenho apresentou o seguinte trabalho numa exposição: um cão de rua, esquálido e doente, foi amarrado num canto da galeria e ali ficou, sem que lhe dessem água nem comida, até morrer. Em seguida se conta que esse mesmo artista foi um dos escolhidos para representar seu país na Bienal Centroamericana Honduras 2008, e se conclama o leitor a assinar uma petição pelo boicote à sua presença no evento.

Fui checar a informação na Internet e há de fato muito material sobre o assunto, diversos blogs comentado o caso e, claro, com as pessoas reagindo indignadamente. Com toda razão.


A exposição ocorreu em Manágua, e a matéria de 4 de outubro do jornal La Nación, da Costa Rica, conta como foi. Transcrevo abaixo algumas partes:

"El artista costarricense Guillermo Vargas, más conocido como Habacuc , está envuelto en una gran polémica debido a la muerte de un perro callejero dentro de Exposición N° 1 , muestra que se realizó en agosto pasado en Managua (Nicaragua). [...]
Como parte de su exposición, el artista enfrentó al espectador a un perro callejero flaco, enfermo y con hambre amarrado a la esquina de la sala. Él capturó al animal en un barrio pobre de Managua. El perro murió tras un día en la exposición [...]. La muestra también incluyó la frase, escrita con alimento de perro, 'Eres lo que lees' [...]"

O artista, que deu ao cão o nome de Natividad, disse que o trabalho era uma homenagem a Natividad Canda, nicaragüense que morreu após ter sido atacado por dois cães rottweiler. Segue a matéria:

"'Me reservo decir si es cierto o no que el perro murió. Lo importante para mí era la hipocresía de la gente: un animal así se convierte en foco de atención cuando lo pongo en un lugar blanco donde la gente va a ver arte pero no cuando está en la calle muerto de hambre. Igual pasó con Natividad Canda, la gente se sensibilizó con él hasta que se lo comieron los perros', explicó .

Incluso agregó: 'Nadie llegó a liberar al perro ni le dio comida o llamó a la policía. Nadie hizo nada'.

Al ser cuestionado acerca de si alimentó al animal o no, el artista se negó a responder.¿Por qué no usó otro medio de expresión? 'Recojo lo que miro... El perro está más vivo que nunca porque sigue dando qué hablar', dijo."

São Francisquinho de Assis, valei-nos!

Tomado como obra artística, esse exercício de crueldade é fraco "do primeiro ao quinto", numa expressão antiga que meu pai gostava de usar. Quase não há o que falar a respeito, mas para não passar batido quero apontar apenas a falha óbvia: o artista pretende denunciar a hipocrisia do público que só "vê" o cão quando este está deslocado da rua, mas para efetivar sua denúncia tem de incorrer em hipocrisia igual ou pior: acaso ele vê o cão de maneira tão distinta assim? Ele se exime de dizer se a sua atitude de deixar o cão à morte é certa ou errada, mas propõe que o público seja julgado. Mas de onde, de que planeta esse sujeito está falando? Quem ele pensa que é? Apesar de se acreditar diferente "de la gente", já que ungido de justificativa artística, o discurso pretendido só faz desmoronar sobre si mesmo. Não há crítica nem julgamento, o que há é redundância, uma oitava acima. Ele vai em busca do desgraçado num bairro pobre de Manágua (onde para capturá-lo contou com a ajuda de cinco meninos, a quem deu um troquinho), e desde antes está prevendo o próprio trabalho, a instalação na galeria, como será a reação das pessoas, etc. Vê tudo no processo, menos o cão. Argumentar que ninguém fez nada para tirar o animal daquela situação é de uma falta de preparo intelectual que denuncia o artista sem estofo, e de um cinismo que só esclarece o ser humano profundamente perdido em autocentramento. O cão não está mais vivo agora porque segue dando o que falar, é o contrário: falam dele agora justamente porque está morto. Quem parece estar "mais vivo" depois disso é o assassino.


De resto, galerias e vernissages à parte, o que sobra é bem simples: a energia gasta para achar e capturar o cão adoentado e faminto poderia ter sido usada para tentar encontrar uma melhor condição de vida para ele. Até a indiferença mais brutal teria sido menos danosa do que o olhar arrogante que identificou naquele ser um objeto útil para um fim alheio e contrário ao seu mais básico e legítimo interesse: viver.

O que seria, realmente, ver o cão?

Do ponto de vista antiespecista, toda a crueldade cometida contra o pobre cão tem como gerador o fato de ter sido tratado como objeto passível de ter dono. Por não ter dono foi livremente capturado das ruas, e então por ter dono deixaram que ficasse à mercê da vontade deste, esperando a morte numa galeria de arte. Todas as outras discussões são acessórias a esse fato central.

É a crueldade "desnecessária" do artista infeliz para com o cão que detona nossa indignação instantânea, mas não faltam crueldades equivalentes contra animais não-humanos embutidas nas nossas atividades humanas mais cotidianas. Se é possível discutir a partir desse episódio triste algo como "o que é arte" e qual deve ser o limite dessa atividade humana tão nobre, devemos lembrar que também é possível discutir "o que são as necessidades humanas" de companhia, alimentação, vestuário, entretenimento, pesquisa científica, etc.

Sabemos todos, ainda que instintivamente, que não há atividade humana, por mais nobre, que prescinda de um comportamento humanamente responsável.

Respondi ao e-mail da Lut dizendo a ela (pela centésima vez) uma citação de Clarice Lispector: "Quanto a escrever, mais vale um cachorro vivo."

[ as fotos foram tiradas de um blog que documenta a exposição, que você vê aqui; a matéria do jornal La Nación você lê aqui; a petição para o boicote à participação do artista na Bienal Centroamericana Honduras 2008 pode ser assinada aqui ]

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