Este é um blog sobre direitos animais e veganismo, abordados a partir da experiência de quem não sabia quase nada a respeito até o dia em que.

sábado, 18 de agosto de 2007

Sacações



Fui um ovo-lacto-vegetariano meia-boca durante mais de 20 anos, e dentro de uma trajetória bastante típica: comecei abolindo a carne vermelha, anos depois parei de comer aves e, há pouco tempo, abri definitivamente mão de peixe, que ainda comia quando "não havia mesmo outra opção". A primeira motivação daquele adolescente no início dos anos 1980 foi a saúde: "cara, a carne vermelha é cheia de adrenalina porque o boi é abatido numas de horror, saca?" (a gente falava mais ou menos assim, eu juro!). Uma coisa que sempre fiz questão de frisar era que a minha opção também era fruto de eu não gostar de carne: "se me desse prazer, não sei se pararia". Esse assunto invariavelmente surgia à mesa, quase sempre em algum ajuntamento festivo e na hora em que o cardápio chegava e começavam as especulações sobre o que pedir, ou quando o primeiro bife era servido. Um amigo avisava ao resto da turma: "ah, o Cleber não come carne, viu?", e lá ia eu explicar pra alguém os meus porquês. Diante dessa recorrência, montei um discurso breve que repetia sempre, o da opção que não mexia no meu prazer, e que tirava logo o foco de cima desse assunto: meu medo maior era de ser identificado imediamente como aquele ecochato empata-foda da diversão gastronômica alheia. Como típico filho dos anos 1960, adolesci querendo o fim da ditadura militar e de todas as ditaduras, e acreditava, sem muito espaço pra discussão, que as minhas opções "cara, não podem interfeir nas opções alheias" (mas achava normal me juntar à massa agitando bandeiras do PT na rua pra, quem sabe, interferir nas opções do eleitor indeciso). Saca?

É claro que ao longo desses mais de 20 anos, e depois de muitas curvas, estendi finalmente a minha noção de prazer para incluir no rol das coisas justas até mesmo o prazer do boi de permanecer vivo, então deixei – internamente – de perceber a minha motivação vegetariana como possível apenas por não interferir no prazer do meu paladar. A essa altura já era mais do que isso. Mas socialmente sempre evitei mencionar a implicação moral positiva de salvar a vida do boi, e nisso permaneci o mesmo adolescente/jovem adulto dos anos 1980: pânico de ser o chatinho da festa, e havia ainda um fiapo de crédito incondicional aos prazeres dos meus irmãos mais próximos, os animais humanos.
Hoje, depois da curva mais abrupta, e que lamento ter chegado só às vésperas dos meus 41 anos, percebo o quanto fui coerente e incoerente bem quando achava ser o oposto. A alienação do aspecto moral na minha vivência vegeteba meia-boca não foi a chave que entendi necessária para ser aceito socialmente, mas sim a condição básica que me permitiu fazer essa negociação, assim como negociar ainda por um tempo o frango e, um pouco mais, o peixe. Se, depois de uns anos, a percepção do aspecto moral já existia e não era trazida integralmente à prática, então a própria percepção não era integral. Eu estava fundamentalmente alienado dessa moralidade, e minhas atitudes e opções foram logicamente pautadas de acordo. Quer dizer, achei por mais de 20 anos que sim, mas, cara, na real eu não estava sacando rigorosamente nada.

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