Este é um blog sobre direitos animais e veganismo, abordados a partir da experiência de quem não sabia quase nada a respeito até o dia em que.

sábado, 12 de abril de 2008

Explícito implícito

Descobri outro dia no site de Gary Francione que estão disponíveis versões em português dos vídeos dele. Na realidade são slides de texto e imagem em forma de vídeo. O primeiro, Teoria dos direitos animais, dá uma geral e introduz o assunto. Não há sequer trilha sonora e as imagens são poucas, e me chamou a atenção a falta de imagens "chocantes". Há cenas de animais mortos ou feridos, mas uma foto de jornal ilustrando alguma matéria sobre produção pecuária corre o risco de ser mais perturbadora. Gostei. Imediatamente me deu vontade de apresentar o vídeo pra todo mundo. Hoje enviei um e-mail para os amigos queridos dando o link até o vídeo e explicando do que se tratava, e explicitamente avisando de que ninguém seria submetido a um "show de horrores" caso se dispusesse a assistir. Quer dizer: eu sou absolutamente a favor do show de horrores. Assisti a Terráqueos e sei o quanto a crueza de todas aquelas cenas ajudou na minha mobilização imediata com o assunto (mas falo sobre isso em seguida). E acho importante salientar que qualquer diferença dessa natureza na abordagem do tema há de se dar num nível bastante superficial. Uma imagem ou duzentos e cinqüenta? Com ou sem sangue? Isso tudo é irrelevante uma vez que se tenha realmente começado a enfrentar a questão, mas, antes que esse momento aconteça, a abordagem "menos chocante" dos direitos animais me parece uma boa alternativa para alcançar aquelas pessoas que sabem o tanto de horror que está necessariamente implicado nesse tema. As pessoas que, exatamente por causa disso, não querem mais saber. Ou saber "mais" do que já sabem. O dado explícito e chocante das imagens (ou da descrição textual pormenorizada) acaba servindo de justificativa para o afastamento total do debate, e falo aqui principalmente do debate consigo mesmo. É a hora de dar stop no player, a hora de fechar o livro, a hora de amassar o panfleto. "Vamos mudar de assunto?" Uma pena, pois quando alguém se recusa a pensar sobre isso nesses termos está se recusando a debater o assunto de qualquer maneira, pois não há como alienar esses termos da discussão. Seria mais ou menos como tentar discutir o Holocausto sem passar pelo terror dos campos de concentração, ou debater os problemas por que passa a população afro-descendente do Brasil deixando de lado tudo o que aconteceu antes de 13 de maio de 1888.
"Quem precisa saber das condições enfrentadas nos navios negreiros, por exemplo? Vamos mudar de assunto?"

Não. Nossa consciência nos diz: precisamos de todo detalhe sobre os navios negreiros e as senzalas, toda descrição macabra sobre os guetos e os campos. A fatura desse enfrentamento deve ser debitada na conta de todos nós. Esse assunto é nosso, gostemos ou não. Por isso me sinto bastante afortunado pela oportunidade de ter assistido a Terráqueos. Por ter sido confrontado com o que é também da minha conta. Foi importante ter conseguido não desviar o olho uma vez sequer, e eu quis fazer isso várias vezes. O dedo coçava pra apertar o stop no controle remoto. Mas tratei de agüentar no osso, porque aquilo me dizia respeito. Não olhar para aquelas cenas seria proceder a mais uma violência contra as vítimas que aparecem no filme. Ignorar seu sofrimento seria matá-las uma vez mais. Por fim ficou claro que meu estômago embrulhado, minha culpa, meu horror não eram nada, rigorosamente n-a-d-a diante do que cada um daqueles seres passou. Num jogo de forças em que trezentas emoções conflitantes brigam dentro de você, o que acabou prevalecendo foi um sentimento básico de acatar a responsabilidade por aquelas cenas, e esse foi o ponto exato que detonou toda a transformação posterior.

Aí, pra colocar a imagem no post anterior a este fui obrigado a rever o filme justamente na parte em que eu mais quis fugir dele. A pior cena, a mais terrível pra mim. Tanto, que não conseguia sequer falar sobre ela. Eu só conseguia dizer "tem uma parte...". Fiquei assim por semanas, meses até. Que nada: um ano e quatro meses. Só consegui verbalizar a frase "a cena da raposa" quando comentei com o Felipe sobre a ilustração que iria colocar no post. Como para ele tudo ocorreu de maneira muito parecida, até então éramos dois imbecis falando sobre esse momento particular do filme:

— É que naquela hora.
— Pois é.
— Não dá nem pra falar, né?
— É.
— Pois é.

O blog não tem como característica o uso dessas imagens terríveis. Mas no último post eu achei que precisava colocar a raposa. E tive de ir buscá-la no filme. Pra achar um frame adequado, revi e revi a cena que tanto me doera. Doeu de novo, é claro, mas dessa vez percebi uma relação diferente com a dor, e que agora me parece difícil colocar em palavras. Um outro entendimento, talvez, a partir da sensação de que, num mundo especista e cheio de contradições a respeito, o enfrentamento dessa dor não é apenas previsível. Ele é, realmente, necessário.

[ para ir direto aos vídeos no site de Gary Francione, clique aqui (e veja se você não fica com vontade de também mandar o link para os seus amigos...); a ilustração do post foi retirada da cena menos explícita de A lista de Schindler, filme de Steven Spielberg de 1993 ]

sábado, 29 de março de 2008

Parênteses

Depois que você passa a incluir nas suas preocupações os direitos animais e trata de viver de acordo com isso, não faltam situações de confronto com o padrão especista vigente, especialmente perturbadoras nos momentos mais simplinhos e cotidianos. É no miúdo que o enraizamento profundo do especismo se deixa ver com mais eloqüência: tão sólido e natural para uns quanto absurdo e insustentável para outros. Uma situação de tensão típica é juntar à mesma mesa onívoros e veganos, e o tanto de discussão proveitosa ou hostilidade aberta que pode resultar desse encontro vai depender de civilidades e humores. Se for para apostar na convivência das diferenças, cabe ao vegano, em tal situação, guardar o discurso mais contundente para o momento em que ele se oportunize – caso se oportunize – no encaminhamento natural da conversa. Que pode até se dar no meio do próprio jantar, por que não? Por isso cabe ao onívoro ter cuidado com o que comenta ou questiona e, sobretudo, como faz o comentário ou o questionamento. A pergunta "você não come carne?" não precisa ser respondida com a descrição pormenorizada do processo de abate num matadouro, mas se após ser informado das convicções do outro o onívoro conduzir a prosa rumo à desqualificação dessas convicções, aí ele merece sim alguma resposta que abra uns belos parênteses bem no meio do seu bife. O momento de refeição/prazer de uma pessoa não é, em si mesmo, mais sagrado que qualquer momento de outra pessoa. As circunstâncias devem dar o tom e a medida para todos. Mas o especismo continua sendo o paradigma da maioria, então é comum ver onívoros, cheios da razão impensada que o pertencimento à maioria proporciona, se dizerem muito incomodados de ter o seu prazer estragado por algum comentário radical e desagradável, não importam as circunstâncias.

Fiquei pensando nisso porque hoje, no meio do almoço, com a TV ligada no Jornal Hoje, assisti à seguinte matéria:

"Duzentas e setenta e cinco mil focas devem ser mortas na temporada de caça no Canadá. Para diminuir a crueldade, o governo determinou que os animais só podem ser abatidos a tiros ou com golpes na cabeça e pediu aos caçadores que, antes de retirar a pele das focas, se certifiquem de que elas estão mortas.
Os ecologistas protestaram. Segundo eles, as novas regras não vão impedir a matança bárbara dos animais."

Como são as coisas: para ter a sua refeição estragada nem é preciso ser onívoro, e muito menos ter ao lado um defensor dos direitos animais radical e desagradável. A realidade sozinha já se encarrega disso.

[ o trecho da matéria foi reproduzido na íntegra, e pode ser visto aqui; a ilustração do post foi retirada do documentário Terráqueos (Earthlings), e mostra uma raposa viva momentos após ter tido sua pele inteira arrancada a sangue frio, em uma fazenda de peles chinesa; as focas no Canadá não sofrem horrores menores: aqui você pode assinar uma carta ao ministro canadense do Comércio Internacional para que acabe com esse absurdo ]

quinta-feira, 20 de março de 2008

Das comemorações

Não bastasse a notícia recente de que a caça esportiva foi proibida no Rio Grande Grande do Sul pelo TRF, trazida pela EcoAgência, deu hoje na Folha Online: o Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) proibiu o procedimento de corte de orelhas e cordas vocais em cachorros e remoção de unhas em gatos. A medida, publicada ontem no Diário Oficial da União, também torna não-recomendado o corte de cauda em cachorros.

Gente!

Diz a matéria: " 'A conchectomia [corte da orelha] e caudectomia [corte da cauda] são tradições que alguém criou por entender que os animais ficam mais bonitos nessa condição, mas temos que respeitar o direito deles', afirmou Benedito Fortes de Arruda, presidente do CFMV."

Yes!

Manifestando-se contrário à resolução, Délio Mendes, criador de cães doberman em Brasília, diz que nas competições da raça os animais com orelhas cortadas levam vantagem por seguirem a orientação da federação internacional. Hein? Ele completa, candidamente: "É para satisfazer o ego do dono? É, mas a vaidade tem benefício para o cachorro, que vai poder comer ração de boa qualidade pelo investimento que o dono faz nele."

Eu é que não queria ser amigo desse Délio: deve ser o tipo de sujeito que só te oferece uma cerveja se você satisfizer a vaidade dele:
— Ô, Delinho, como você tá bonito hoje, rapaz!... sim, quero sim, com pouco colarinho, por favor. Lindão!

[ sobre a proibição da caça esportiva, veja a notícia aqui; a matéria da Folha Online você pode ler aqui ]

sexta-feira, 7 de março de 2008

O inferno dos outros não é outro inferno

Felipe e eu estávamos anteontem no final da manhã esperando ônibus numa grande avenida da cidade. O calor, a poluição e o ruído excessivo tinham me colocado rapidamente em profundo desconforto físico. Lamentava não ter um carro e resolver a tarefa simples de comprar material de ferragem sem precisar ficar ali à espera. Esse material era para finalizar um trabalho doméstico que estava por trás do principal motivo do meu desconforto: poucos dias antes, para instalar prateleiras em casa, tive de fazer exatos 24 furos numa parede que se mostrou mais resistente do que prometia. Foram alguns bons minutos ininterruptos com a furadeira em modo "impacto". Quando acabei, meu ouvido direito zumbia e apitava como se recém-saído de um show de rock, daqueles em que você fica muito perto de alguma caixa acústica. Nada que uma boa noite de sono não resolva, pensei. Mas o dia seguinte começou com o meu primeiro lampejo de consciência já detectando: o zumbido-apito ainda estava lá, e tão forte como antes. Well...
A Internet me esclareceu o termo médico: tinnitus. Pode ser causado por doença ou por trauma. A partir de 85 decibéis os ruídos começam a causar algum estrago à audição. Uma furadeira pode chegar a 105 decibéis. A extensão do dano vai depender da sensibilidade do indivíduo, da intensidade do ruído, do tempo de exposição a ele e também do quanto o ouvido já foi afetado em ocasiões anteriores. O tempo necessário à recuperação aumenta a cada novo trauma. Às vezes, o tamanho do trauma ou a sua repetição tornam o tinnitus permanente. Uns 17% da população mundial têm de conviver com um ruído de algum tipo que está lá, dentro da cabeça, e do qual não se pode escapar. Não há como saber se o tinnitus vai sumir ou não a não ser esperando pra ver. Pode durar dias, mas, pelo que li, em geral deve desaparecer em até 24 horas em 90% dos casos, chegando até 48 horas os outros 10%.

Meu primeiro dia pós-trauma foi um inferno de assombrações me dizendo que estava condenado àquele incômodo para o resto da vida. Quando fecharam as 24 horas eu comecei a ter a impressão de que alguma diferença estava ocorrendo conforme eu protegia ou não o ouvido de qualquer ruído. Apostei nisso e o vedei o quanto pude com algodão, mas arrasado pela desconfiança de que a impressão talvez não passasse mesmo de apenas uma impressão. Enfim, foi só do segundo para o terceiro dia que tive certeza: o ouvido estava, aos poucos, se recuperando.

Esperando por aquele ônibus, agora muito sensível às agressões acústicas causadas pelo trânsito de uma cidade grande, eu pensava na falta de um carro e na minha recente e perigosa aproximação à situação de condenado eterno a um desconforto do qual não se pode escapar. Já imaginou? Nunca mais a sensação de poder descansar no silêncio, ou seja, nunca mais descansar. Para sempre sem saída, como um enterrado vivo. Um horror.
O ônibus demorava. Calor, poluição, ruído. A falta de um carro, e eu tão desconfortável e justificado por quase ter me estropiado para o resto da vida que, ao lembrar que por outro lado isso significava também um carro a menos nas ruas, pensei: "Dane-se!". Naquele momento de imersão autocentrada, o que havia em mim de generosidade e solidariedade estava reduzido a quase zero. Até que saí do meu transe umbilical quando ouvi o Felipe dizendo "Oh!". Me virei e vi: descendo a avenida, um cavalo com uma carroça presa às suas costas lutava para não cair, as patas fugindo ao controle. Muito magro e visivelmente fraco, as ferraduras eram armadilhas no asfalto escorregadio, com todo o peso da carroça o empurrando ladeira abaixo. O sinal fechou e não foi fácil parar a tempo. Triste cena urbana porto-alegrense no início do século 21: um homem e uma mulher numa carroça, na avenida movimentadíssima, puxada por um cavalo fraco, provavelmente doente e desnutrido, à beira de tombar de exaustão, de dificuldade, de impossibilidade de prosseguir.

Imediatamente me conectei com o peso nas costas. O ângulo de visão restringido. O caminhar escorregadio e a relação direta com o solo definitivamente comprometida pelo metal estranho ao corpo. Metal também na boca, onde se sentem as tensões das rédeas puxadas. A fraqueza tomando conta dos membros. O ruído excessivo e constante do trânsito, o cheiro agressivo da poluição. Todos os sentidos ali, presentes num organismo vivo e complexo, e todos eles condenados a um estresse constante. Não se trata de um trauma temporário, portanto não há o que esperar. O amanhã será a repetição agoniante do hoje. Enquanto forem mantidos como regra seu status de propriedade, a crueldade talvez ignorante dos que se pretendem seus donos e a indiferença de todos nós outros, é certo que o cavalo será usado até acabar, como um objeto, e até acabar será esse inferno. Fosse um ser livre, ele teria autonomia para preencher a vida de experiências trazidas por sentidos também livres. Mas não é o caso. Quanto a mim, devidamente arrancado da minha bolha de autocentramento pela cena triste e injustificável, olhei e vi minhas assombrações recentes plenamente consumadas na vida miserável daquele cavalo. Para sempre sem saída.

O horror. O horror. O horror.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

A última prateleira

Quanto se inicia qualquer discussão envolvendo direitos animais e veganismo, é batata que aparecerão muito espontaneamente alguns argumentos que, embora rasinhos que só e pobres de marré, podem surgir tanto na boca de pessoas pouco esclarecidas quanto na de gente muito bem preparada para qualquer debate. É que esses argumentos não se mantêm dentro de nenhuma fronteira de nível de escolaridade, classe econômica ou de qualquer outro divisor sociocultural. Estão disseminados por tudo e todos como um bem comum, à disposição, e podem acabar sendo, num momento ou outro, acionados por qualquer um de nós. Alguns deles já tive como meus, e outros li por aí ou pude ouvir boquiaberto, mas pego tão "de surpresa" que não consegui rebater de imediato. Talvez não exatamente pela surpresa: podemos ficar desarmados não pela força desse tipo de argumento – que é sempre lugar-comum –, mas pela força da facilidade automática com que ele surge, por mais absurdo ou contraditório que seja. Acho isso uma incrível evidência do poder da naturalização das idéias. É certo que as coisas que temos como corretas não precisam ser necessariamente fruto de conclusões elaboradas. No final das contas, a maior parte dos fundamentos conceituais da nossa vida cotidiana parece mesmo estar guardada lá na última prateleira da estante. "Alguém" os colocou lá, e ainda que visitemos a estante várias vezes por dia trocando um livro por outro, a última prateleira segue intocada, acumulando pó. Uma vez trazidos para o debate, os pobres e rasos argumentos não resistem ao menor exame, mas alcançar a última prateleira é que são elas.

Aproveitando o carnaval pra revisar o pó da
minha, sua, nossa última prateleira, elenco abaixo alguns desses argumentos, seguidos das respostas que muito sinceramente eu acho que eles de fato merecem. Na boa.


A evolução naturalmente nos colocou no topo da cadeia alimentar
E por "cadeia alimentar" entenda-se qualquer cadeia de supermercados onde nós, os predadores, vamos caçar nosso alimento armados de cédulas, cheques ou cartões de crédito. Bem naturalmente.

Animais matam outros animais para comer
É verdade. Coisa mais linda é ver no National Geographic Channel os leões manejando suas criações de impalas, inseminando-os artificialmente, dando vacina e hormônio. Ou os macacos da Amazônia, superinteligentes, abrindo a floresta pra fazer pasto pro gado: tem coisa mais comovente?

O ser humano é onívoro
Todos sabem que devemos obviamente comer de tudo. Carniça. Bambu. Água-viva. Cocô. Baconzitos. Plástico.

Então não podemos também comer as plantas
Isso mesmo, e devemos lembrar de outras lutas importantes: não criar o trigo em confinamento; não separar os filhotes de alface da mãe logo após o nascimento; não impedir a vida social das maçãs. E nem me fale da crueldade dos casacos de pele de feijão e dos circos de brócolis amestrados.

Mas e as crianças?
Vão bem, obrigado.

Se "tudo" tem vida, então a preservação apenas da vida animal é hipócrita ou ignorante
Logo só temos duas opções: ou preservamos a vida onde quer que ela se manifeste ou assumimos de uma vez que podemos acabar com ela sempre que desejarmos. Em outras palavras, você escolhe entre viver de luz ou matar quem quer que atrapalhe seu caminho. Tomar um antibiótico é uma atitude moralmente equivalente a estourar os miolos daquele espertinho que fura a fila do cinema. Quer dizer, quase, né?: o antibiótico mata muito mais vida.

Simplesmente não consigo parar de comer carne
Eu também simplesmente não consigo parar de olhar para as suas carnes, benzinho!

Os direitos animais são apenas mais uma invenção humana
Em contrapartida, o churrasco só pode mesmo ter sido inventado por Deus. Ou pela estátua do Laçador.

Precisamos de proteína e cálcio

Sim, e só há proteína nas carnes e só há cálcio no leite. E também só há uma verdade nutricional, justamente aquela referendada pelos produtores de carne e a indústria de laticínios.

Comer carne é uma tradição cultural que deve ser mantida
Pode crer: aqui na caverna da minha família, nos orgulhamos de manter a fogueira ininterruptamente acesa há uns 50 mil anos. O fogo, além de calor, fornece uma boa iluminação. Amanhã devo acabar a pintura de mais um bisão. Vai ficar lindo de morrer.

O estilo de vida vegano é muito radical
Não é? Pense bem: a própria pessoa racionalmente se responsabilizar pela sua dieta e seus hábitos de vida levando em consideração o impacto que causa aos outros e ao meio é praticamente um rafting, um bungee jumping, um rapel no Salto Ángel. Gente louca.

Deus criou os animais para que nos servissem de alimento e vestuário
Exatamente como demonstrado por Charles Darwin.

Defensores dos direitos animais são caga-regras mal-humorados
Ô pessoalzinho chato! Se levam tão a sério e são tão insuportáveis quanto os defensores dos direitos humanos. Mas não me entenda mal: é evidente que sou a favor dos direitos humanos. Pra humanos direitos, é claro.

[ a imagem que ilustra o post é da Biblioteca Joanina, na Universidade de Coimbra, Portugal ]

quinta-feira, 31 de janeiro de 2008

Puxa, Sonia, que pena

Dezembro passado o Felipe e eu assistíamos ao programa Happy Hour, no GNT, cujo tema do dia era "meter o pé na jaca" no final de ano, ou seja: sobre os excessos alimentares nas festas de Natal e Ano Novo. Entre os convidados, a jornalista e escritora Sonia Hirsch, que há muito tempo tem um trabalho bastante conhecido sobre alimentação e saúde. Lá pelas tantas, Sonia, vegetariana durante anos e que voltou a comer carne, comentou que por causa disso agora era de novo "uma pessoa normal", e acrescentou que, como jornalista, e portanto "curiosa", não podia mesmo ficar restrita por uma dieta cheia de interdições.

Putz!

Sonia se tornou uma referência pra mim depois que li o seu Prato Feito, livrinho cuja primeira edição saiu em 1983, com receitas e dicas sobre alimentação (basicamente) vegetariana que comprei (já na terceira edição), segundo a anotação na folha de rosto, em 17 de dezembro de 1986. Nele, com o seu texto deliciosamente coloquial, ela fala sobre "não ser radical", "seguir a própria intuição" e, principalmente, "nós somos o que comemos". Explica os horrores do açúcar refinado, dos pesticidas agrícolas, dos problemas de hormônios & cia. na criação de animais para o abate e lembra que leite de vaca é coisa para bezerro, não para humanos. Em suma, defende a alimentação vegetariana, ainda que não repudie por completo o consumo de produtos de origem animal, pois entre as receitas estão incuídos: 1) sardinha, 2) camarão, 3) siri, 4) vongoli, 5) polvo, 6) cherne, 7) ovas de tainha, 8) paella, e mais duas receitas de ricota e quatro receitas com peito (porque a carne é menos irrigada) de frango (caipira, é claro). São portanto 14 receitas com ingredientes de origem animal, que ocupam seis das 53 páginas do livro dedicadas a elas. Para alguém cujos dentes sentem saudade de um bife, Sonia recomenda seitan (bife de glúten) e carne de soja.

Quer dizer: a concessão às receitas carnívoras não chega a lançar nenhuma dúvida sobre o foco principal do livro, os benefícios da alimentação vegetariana. Está na página 2:

"E o que mais? Ah, sim, os animais. Ora, deixe os bichinhos em paz. O quê? São bons demais? Bom então tá, se não tem jeito, tá feito. Nada de preconceito. Qual é o grilo? Não é grilo só não, é que assim que morrem começa a decomposição, então... Ao menos prefira a carne branca, aquela onde o sangue não estanca. Peixe fresco, galinha de quintal, ovo de pai e mãe, tudo em pequenas porções e com montões de verdura pra acompanhar. Quem come muita carne são os leões, os tigres, as panteras, as oncinhas que têm garras pra caçar e não entendem de cozinha."

Lá em 1986 eu lia isso e assinava embaixo. Sonia não comia carne, não era favorável ao consumo de carne, maaaaas entendia que, às vezes, "não tem jeito". Afinal, cuidados na alimentação dizem respeito a você e seu bem-estar, né não? Aí, tempos atrás a Cláudia comentou comigo: "Sabia que a Sonia Hirsch voltou a comer carne?" Não sabia e achei bem esquisito, mas entendi isso como uma flexibilização cabível. Sonia Hirsch é Sonia Hirsch, pô! Se ela não souber o que está fazendo com a própria alimentação, quem saberá?

No programa do GNT a história foi contada. Numa festa de Natal a que tinha sido convidada, ela foi colocar na mesa o prato que havia levado e viu, bem ali do lado, carne de porco. Não lembro se costela ou lombinho, mas era um prato pelo qual ela "era louca" antes de se tornar vegetariana. Aí, pensando no seu prazer e no seu bem-estar, decidiu voltar a comer carne. Porque, afinal, a gente não pode ficar preso a uma cartilha que determina que abramos mão de coisas das quais gostamos. Esse foi o argumento colocado, e a partir dele se entende que negar essa cartilha é, pelo visto, o que ela julga "ser normal".

Nem vou comentar sobre a não percepção da outra cartilha, a que determina que busquemos as coisas das quais gostamos ainda que isso custe a vida alheia, pois vou direto ao ponto que decorre daí: a deliciosa, tranqüilizadora e superior sensação de ser alguém normal. Pode até parecer, mas não foi uma piada com o sentido escorregadio e de saída problemático da palavra "normal". Não foi também apenas um lembrete engraçadinho e infeliz do quanto podemos nos tornar "radicais" ao seguir "ideologicamente" uma dieta, mas antes uma afirmação do quão fora da normalidade estão aqueles que não colocam seus prazeres em primeiro lugar. O clichezão pra lá de surrado: "a obrigação da gente é ser feliz".

Ahã.

Claro, relendo agora o Prato Feito para citá-lo neste post deu pra ver que essa concepção já estava lá, sempre esteve lá e é o mote que agora justifica a volta ao padrão onívoro. Se a vida é pra ser vivida, tratemos de curti-la ao máximo, com o máximo de saúde, o máximo de felicidade. Quem discordaria disso? A pequena concessão à carne nas receitas foi uma porta que nunca deixou de estar aberta, por isso não há nada de surpreendente no retorno de Sonia à sua própria normalidade... é só a "volta dos que não foram".

Defendo que cada um faça consigo o que bem entender, mas puxa: com um mínimo de informação já sabemos que ao escolher um comportamento (ou uma dieta) em vez de outro estamos escolhendo também o tipo e o quanto de impacto e sofrimento infligiremos aos outros seres e ao meio. Nem precisa ser jornalista ou curioso pra saber disso. Dá uma pena danada que mais de 20 anos trabalhando com afinco sobre o tema não tenha aberto para Sonia a porta-para-além-do-próprio-umbigo, mas o que realmente chateia é vê-la sucumbir à tentação dessa normalidade tão... "normal". Ela própria, nas vezes em que se expôs fora do gueto ipanemense dos anos 1970 e 1980, deve ter sentido na pele o que é ser considerado fora da normalidade da maioria bem-pensante. Mas agora a boa filha à casa torna, pela via segura do seu autocentramento. Automotivação. Auto-referência. E, mais triste que tudo, passando uma sensação de desistência. "Se não tem jeito, tá feito". A concessão de 1983 virou aconselhamento em 2007. Não mude. Não saia do lugar. Não coloque idéias novas pra interagir com as idéias velhas. Não olhe para além de suas pequenas preferências e necessidades individuais.

Mas e o coletivo? Bem, do coletivo fique apenas com sua face difusa e não ameaçadora, portanto não se detenha nas contradições que surgem, nas urgências que tiram o seu chão e nos problemas que insistem em gritar na sua cara. Não olhe pra isso. Olhe para a grande massa sem nome ao redor, veja só como você também faz parte dela. É tranqüilizador, não é? A vida de sempre, os hábitos de sempre, as soluções de sempre. O futuro a Deus pertence e o presente é tratar de garantir as satisfações mais imediatas. Pouca farinha, meu pirão primeiro! Ah... não há nada como viver ao máximo a felicidade de uma vida inteiramente normal... Alguém aí discorda disso?

[ a ilustração do post é de Norman Rockwell, Thanksgiving Dinner, 1943 (ou Freedom from Want), da série "Four Freedoms", feita para o Saturday Evening Post a partir de um discurso do presidente Franklin D. Roosevelt; Sonia Hirsch tem um site com informações sobre seus livros e alguns textos disponíveis, que você pode visitar aqui ]

terça-feira, 15 de janeiro de 2008

Adeus ano velho, feliz ano novo

Metade de janeiro, já. Será que ainda dá tempo de desejar feliz ano novo?

Pensando sobre o que postar, resolvi publicar meu balanço de fim de ano. Então lá vai.





o que fiz de realmente importante em 2007:
  • dei espaço para que as caídas de ficha do final de 2006 [ leia (ou releia) aqui ] seguissem naturalmente seu curso interno e operassem as mudanças externas no meu comportamento cotidiano
  • consumi menos
  • li e me informei mais

o que não fiz de realmente importante em 2007:
  • exercício físico

o que quero fazer de realmente importante em 2008:
  • óculos novos
  • injeção de B12
  • consumir menos
  • ler mais
  • exercício físico

A todos que andaram aqui pelo blog visitando e comentando (por escrito ou pessoalmente), meu superobrigado pela atenção e carinho. Valeu demais a troca de idéias, espantos e risadas.
No mais, desejo de coração que este ano seja bacaníssimo para todos os habitantes sencientes deste trepidante planeta: menos sofrimento e mais liberdade. E especialmente para nós, animais humanos: mais lucidez e compaixão, sempre.

Beijo grande e feliz 2008!

sábado, 17 de novembro de 2007

Abrace a Amazônia pelo fim do desmatamento















Enquanto o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC) divulga seu quarto relatório, com notícias ainda piores sobre a velocidade das transformações climáticas causadas pelo aquecimento global, o Greenpeace Brasil promove uma ciberação de abraço virtual na Amazônia, com texto endereçado ao presidente Lula pedindo pela redução a zero do desmatamento até 2015. Basta entrar no site e se integrar à corrente.

Participe: http://www.greenpeace.org.br/desmatamentozero/

[ o site do IPCC você acessa aqui ]

quarta-feira, 14 de novembro de 2007

Assimetria

Acabo de ler o ótimo livro de Carlos Michelon Naconecy, Ética e Animais (EDIPUCRS, 2006), que tem como subtítulo "um guia de argumentação filosófica" e trata, basicamente, disso: elencar as justificativas mais comuns que sustentam o pensamento dominante de exploração dos animais e quais são os contra-argumentos éticos correspondentes, caso a caso. Uma rápida noção introdutória sobre ética (filosofia para não-filósofos e tipos de teorias éticas) abre o volume, e a descrição sucinta das principais vertentes da defesa dos animais o completa. Pena o autor não citar, nem como sugestão de leitura, os textos de Gary Francione, especialmente a crítica à abordagem bem-estarista que surge das brechas deixadas pelo utilitarismo de Peter Singer, mas esse assunto por si só – quem sabe? – pode render um outro livro inteiro.

Da leitura, feita num só fôlego, saí com a sensação muito concreta da enorme assimetria entre a defesa do direito ao bife e a defesa do direito do boi. Os argumentos colocados tão didaticamente lado a lado fazem a delícia de quem aprecia exercícios lógicos, mas fazem mais: redundam, por diversos caminhos, a divergência básica das motivações que estão por trás de uma e outra posição. A questão-chave colocada pelo ativismo dos direitos animais é bastante enxuta: a afirmação de que devemos incluir os animais não-humanos no círculo da comunidade moral atualmente contemplada pelas nossas preocupações éticas. Quem defende o direito ao bife responde a isso dizendo: "Não."

Claro, você sabe e eu sei que a maior parte das pessoas que defendem seu bife não se acredita deliberadamente vetando considerações de cunho ético sobre o boi. Talvez porque não haja consciência de que uma coisa está implicada na outra, e um bom exemplo recorrente é a revolta espontânea contra maus-tratos sofridos pelos animais. Recentemente a mídia nacional reproduziu a reportagem do Jornal do Almoço, um dos programas de TV mais antigos e mais vistos no Rio Grande do Sul, sobre as "corridas de bois de canga" na fazenda do pai do prefeito de Vale Verde, interior do estado. A começar pelas apresentadoras do programa, todos se mostraram "chocados" porque os bois (na verdade, touros), durante a competição em que ficavam presos à canga, além de tudo eram cutucados com uma vara que tinha pregos na ponta. A matéria da TV mostrou com nitidez um fiapo de sangue escorrendo do corpo de um deles. Bom, só de lembrar que a maioria dos gaúchos assistiu a essa reportagem enquanto almoçava provavelmente alguma comida à base de carne, é de causar espanto que alguém tenha se espantado... Um fio de sangue e o uso dos animais para jogatina são ocorrências mais que suficientes para condenar a todos os envolvidos nessa crueldade, mas de onde vem e por qual processo as pessoas imaginam que o bife se materializa nos seus pratos?

Não precisamos de varas com pregos, o bife cotidiano já é a negação do visto de entrada do boi na comunidade moral; a partir disso, qualquer consternação pelos maus-tratos sofridos pelo animal vai ser necessariamente fruto de ignorância, incoerência ou cinismo. Diz Naconecy:

"Nós pressentimos os inconvenientes que uma ética para os animais traria para nossos interesses, uma vez que, obviamente, os interesses dos membros de qualquer grupo são mais bem atendidos mantendo o tamanho desse grupo reduzido."

O autor segue citando Dale Jamieson:

"Quanto maior for a participação na comunidade dos iguais, menores serão os benefícios que recebem seus membros. Essa é, em parte, a razão pela qual tem havido uma resistência histórica à ampliação do círculo da preocupação moral. As elites da sociedade têm resistido à reclamação de igualdade por parte das classes inferiores; os homens têm resistido às reclamações das mulheres, e os brancos têm oferecido resistência às reivindicações dos negros. A perda de vantagens injustas é parte do custo da vida em uma sociedade moralmente bem-ordenada, mas é típico que os que têm que pagar por esse custo tratem de evitá-lo."

Eis a assimetria: os discursos da defesa do bife e da defesa do boi falam fundamentalmente sobre como devemos nos comportar, mas enquanto a motivação deste último se baseia na ampliação da visão que passa a enxergar no boi um Outro, os que defendem seu bife estão apenas fazendo isso mesmo: tratando de garantir "o seu", não importa o quanto levantem as sobrancelhas diante de uma matéria chocante na TV em plena hora do almoço.

[ a imagem que ilustra o post foi retirada da matéria do Jornal do Almoço, que você pode conferir aqui; a citação de Naconecy está na página 67, onde também está o trecho de Jamieson citado pelo autor (que você pode ler, na íntegra e em inglês, aqui) ]

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Deslocar para não sair do lugar


Recebi um e-mail da Lut repassando a notícia de que um artista plástico costa-riquenho apresentou o seguinte trabalho numa exposição: um cão de rua, esquálido e doente, foi amarrado num canto da galeria e ali ficou, sem que lhe dessem água nem comida, até morrer. Em seguida se conta que esse mesmo artista foi um dos escolhidos para representar seu país na Bienal Centroamericana Honduras 2008, e se conclama o leitor a assinar uma petição pelo boicote à sua presença no evento.

Fui checar a informação na Internet e há de fato muito material sobre o assunto, diversos blogs comentado o caso e, claro, com as pessoas reagindo indignadamente. Com toda razão.


A exposição ocorreu em Manágua, e a matéria de 4 de outubro do jornal La Nación, da Costa Rica, conta como foi. Transcrevo abaixo algumas partes:

"El artista costarricense Guillermo Vargas, más conocido como Habacuc , está envuelto en una gran polémica debido a la muerte de un perro callejero dentro de Exposición N° 1 , muestra que se realizó en agosto pasado en Managua (Nicaragua). [...]
Como parte de su exposición, el artista enfrentó al espectador a un perro callejero flaco, enfermo y con hambre amarrado a la esquina de la sala. Él capturó al animal en un barrio pobre de Managua. El perro murió tras un día en la exposición [...]. La muestra también incluyó la frase, escrita con alimento de perro, 'Eres lo que lees' [...]"

O artista, que deu ao cão o nome de Natividad, disse que o trabalho era uma homenagem a Natividad Canda, nicaragüense que morreu após ter sido atacado por dois cães rottweiler. Segue a matéria:

"'Me reservo decir si es cierto o no que el perro murió. Lo importante para mí era la hipocresía de la gente: un animal así se convierte en foco de atención cuando lo pongo en un lugar blanco donde la gente va a ver arte pero no cuando está en la calle muerto de hambre. Igual pasó con Natividad Canda, la gente se sensibilizó con él hasta que se lo comieron los perros', explicó .

Incluso agregó: 'Nadie llegó a liberar al perro ni le dio comida o llamó a la policía. Nadie hizo nada'.

Al ser cuestionado acerca de si alimentó al animal o no, el artista se negó a responder.¿Por qué no usó otro medio de expresión? 'Recojo lo que miro... El perro está más vivo que nunca porque sigue dando qué hablar', dijo."

São Francisquinho de Assis, valei-nos!

Tomado como obra artística, esse exercício de crueldade é fraco "do primeiro ao quinto", numa expressão antiga que meu pai gostava de usar. Quase não há o que falar a respeito, mas para não passar batido quero apontar apenas a falha óbvia: o artista pretende denunciar a hipocrisia do público que só "vê" o cão quando este está deslocado da rua, mas para efetivar sua denúncia tem de incorrer em hipocrisia igual ou pior: acaso ele vê o cão de maneira tão distinta assim? Ele se exime de dizer se a sua atitude de deixar o cão à morte é certa ou errada, mas propõe que o público seja julgado. Mas de onde, de que planeta esse sujeito está falando? Quem ele pensa que é? Apesar de se acreditar diferente "de la gente", já que ungido de justificativa artística, o discurso pretendido só faz desmoronar sobre si mesmo. Não há crítica nem julgamento, o que há é redundância, uma oitava acima. Ele vai em busca do desgraçado num bairro pobre de Manágua (onde para capturá-lo contou com a ajuda de cinco meninos, a quem deu um troquinho), e desde antes está prevendo o próprio trabalho, a instalação na galeria, como será a reação das pessoas, etc. Vê tudo no processo, menos o cão. Argumentar que ninguém fez nada para tirar o animal daquela situação é de uma falta de preparo intelectual que denuncia o artista sem estofo, e de um cinismo que só esclarece o ser humano profundamente perdido em autocentramento. O cão não está mais vivo agora porque segue dando o que falar, é o contrário: falam dele agora justamente porque está morto. Quem parece estar "mais vivo" depois disso é o assassino.


De resto, galerias e vernissages à parte, o que sobra é bem simples: a energia gasta para achar e capturar o cão adoentado e faminto poderia ter sido usada para tentar encontrar uma melhor condição de vida para ele. Até a indiferença mais brutal teria sido menos danosa do que o olhar arrogante que identificou naquele ser um objeto útil para um fim alheio e contrário ao seu mais básico e legítimo interesse: viver.

O que seria, realmente, ver o cão?

Do ponto de vista antiespecista, toda a crueldade cometida contra o pobre cão tem como gerador o fato de ter sido tratado como objeto passível de ter dono. Por não ter dono foi livremente capturado das ruas, e então por ter dono deixaram que ficasse à mercê da vontade deste, esperando a morte numa galeria de arte. Todas as outras discussões são acessórias a esse fato central.

É a crueldade "desnecessária" do artista infeliz para com o cão que detona nossa indignação instantânea, mas não faltam crueldades equivalentes contra animais não-humanos embutidas nas nossas atividades humanas mais cotidianas. Se é possível discutir a partir desse episódio triste algo como "o que é arte" e qual deve ser o limite dessa atividade humana tão nobre, devemos lembrar que também é possível discutir "o que são as necessidades humanas" de companhia, alimentação, vestuário, entretenimento, pesquisa científica, etc.

Sabemos todos, ainda que instintivamente, que não há atividade humana, por mais nobre, que prescinda de um comportamento humanamente responsável.

Respondi ao e-mail da Lut dizendo a ela (pela centésima vez) uma citação de Clarice Lispector: "Quanto a escrever, mais vale um cachorro vivo."

[ as fotos foram tiradas de um blog que documenta a exposição, que você vê aqui; a matéria do jornal La Nación você lê aqui; a petição para o boicote à participação do artista na Bienal Centroamericana Honduras 2008 pode ser assinada aqui ]