Este é um blog sobre direitos animais e veganismo, abordados a partir da experiência de quem não sabia quase nada a respeito até o dia em que.

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Crianças e crianças

Meu pai foi criança nos anos 1930, em Rio Grande, no interior do Rio Grande do Sul. Ele contava uma história que ilustra bem a época e o que era ser criança então. Um dia, na casa de uma tia, lhe foi ordenado que fosse até o quintal e matasse uma galinha para o almoço. Ele foi, pegou a pobre pelo pescoço e a girou no ar, em vez de rapidamente desnucá-la. A galinha, claro, não morreu, para extrema aflição dele, e saiu correndo tonta até ser pega pela tia e, aí sim, finalmente morta.
Eu fui criança nos anos 1970, em Porto Alegre. Lembro de assistir uma vez à preparação de uma galinha ao molho pardo, prato de que gostava. Não vi a galinha ser morta, mas presenciei o ritual de deixá-la pendurada de cabeça para baixo, a garganta aberta, sobre uma bacia que recolhia o seu sangue. Depois disso nunca mais voltei a comer galinha ao molho pardo.

Os quintais hoje (quando há quintal) não têm mais galinheiro e nem as galinhas são trazidas vivas para serem abatidas em casa. Ninguém imagina submeter uma criança a ter que matar um animal e comê-lo depois no almoço, nem acha razoável que assista aos procedimentos sanguinolentos que alguns pratos exigem. É trauma certo para a criancinha, sem dúvida. Estou falando obviamente do contexto urbano; os camponeses têm outro tipo de vida.
Pois o trauma infantil seguramente não era uma preocupação nos anos 1930 e, embora fosse o último grito da psicopedagogia moderninha, nos anos 1970 ainda se supunha razoável deixar uma galinha pingando sangue à vista de todos, inclusive crianças. Mas e hoje?

Hoje vamos ao supermercado e galinha é coisa morta, limpa e devidamente empacotada em partes, assim como o boi, o porco ou qualquer outro animal que se julgue comestível. Fora isso, frango é nugget, boi é steak e porco é bacon, presunto, salsicha. Para cada bicho, zilhões de variadas apresentações, cortes, embutidos, embalagens. Só somos lembrados de como são os animais reais através de uma iconografia infantilóide, como o Franguinho da Sadia que ilustra o início desta postagem: ai, que bonitinho! E dá-lhe vaquinha, porquinho, fazendinha...
Dessa maneira vivemos e passamos adiante para as crianças um mundo do alimento de origem animal cheio de diminutivos felizes, cenários felizes, bichos felizes.

O consumo desses produtos cresceu e se industrializou numa tal proporção que deixaria a tia do meu pai, 70 anos atrás, mais tonta do que a pobre galinha correndo pelo pátio. E como indústria é coisa que não acontece no quintal de casa, ou no playground do prédio, a distância entre produção e consumo final é mais do que suficiente para que aí se interponham todos os filtros. Desde os mitos nutricionais que só mais tarde serão desmentidos discretamente pelo Globo Repórter até a reconceitualização surrealista que transforma animais de abate em bichinhos felizes. A indústria cuida que nós, adultos urbanos, não nos traumatizemos com o lado feio do processo. Somos hoje mais protegidos do que as crianças de 30 ou 70 anos atrás, sistematicamente alienados e desresponsabilizados pelo que escolhemos comer. Um crescimento às avessas, rumo a uma inconseqüência – a respeito de si, dos outros seres e do planeta – sem precedentes.

Meu pai foi tratado como adulto precocemente, enquanto que eu tive a sorte de ter respeitado o meu próprio tempo. Mas só para descobrir, já crescido, que parte do que faz hoje a grande engrenagem girar trabalha para que todos continuemos crianças sem traumas e inconseqüentes, num mundo cheio de diminutivos.

5 comentários:

Anônimo disse...

Muito bons teus textos! Eu, como aspirante a vegana, fiquei muito convencida com teus argumentos e concordo plenamente com tudo! Quando tiver um tempo, visite meu espaço de reflexão: www.sobrecoisasdavida.blogspot.com
Abraços,

Camila

Anônimo disse...

Cleber, querido.
O que é a força do recorte geracional. Embora menos novinha do que tu (fiquei horas empacada nessa parte), vivi exatamente esta mesma experiência tão bem narrada.

beijos.
Vê de veganos para nós.
Naza

Cleber disse...

Camila, obrigadão! Tenho certeza que a cada dia você vai achar mais fácil migrar para um estilo de vida vegano. O que parece ser um grande susto na primeira visita ao supermercado depois de decidir cortar os produtos de origem animal na verdade é só o nosso velho hábito esperneando... Pois deixa ele espernear, que hábitos novos estão chegando e vão deixar a vida muito mais bacana, pode acreditar.
Grande abraço!

Cleber disse...

Super Naza, sem essa de menos novinha que a gente tem idade pra ser gêmeos!
Vê de veganos com toda a certeza para nós e o mundo! Ou, como diria um guarda onívoro aos seus pares, diante da horda pacífica às portas do castelo:
– Vede: veganos!!!

Elaine disse...

Excelente post!