
Eu fui criança nos anos 1970, em Porto Alegre. Lembro de assistir uma vez à preparação de uma galinha ao molho pardo, prato de que gostava. Não vi a galinha ser morta, mas presenciei o ritual de deixá-la pendurada de cabeça para baixo, a garganta aberta, sobre uma bacia que recolhia o seu sangue. Depois disso nunca mais voltei a comer galinha ao molho pardo.
Os quintais hoje (quando há quintal) não têm mais galinheiro e nem as galinhas são trazidas vivas para serem abatidas em casa. Ninguém imagina submeter uma criança a ter que matar um animal e comê-lo depois no almoço, nem acha razoável que assista aos procedimentos sanguinolentos que alguns pratos exigem. É trauma certo para a criancinha, sem dúvida. Estou falando obviamente do contexto urbano; os camponeses têm outro tipo de vida.
Pois o trauma infantil seguramente não era uma preocupação nos anos 1930 e, embora fosse o último grito da psicopedagogia moderninha, nos anos 1970 ainda se supunha razoável deixar uma galinha pingando sangue à vista de todos, inclusive crianças. Mas e hoje?
Hoje vamos ao supermercado e galinha é coisa morta, limpa e devidamente empacotada em partes, assim como o boi, o porco ou qualquer outro animal que se julgue comestível. Fora isso, frango é nugget, boi é steak e porco é bacon, presunto, salsicha. Para cada bicho, zilhões de variadas apresentações, cortes, embutidos, embalagens. Só somos lembrados de como são os animais reais através de uma iconografia infantilóide, como o Franguinho da Sadia que ilustra o início desta postagem: ai, que bonitinho! E dá-lhe vaquinha, porquinho, fazendinha...
Dessa maneira vivemos e passamos adiante para as crianças um mundo do alimento de origem animal cheio de diminutivos felizes, cenários felizes, bichos felizes.
O consumo desses produtos cresceu e se industrializou numa tal proporção que deixaria a tia do meu pai, 70 anos atrás, mais tonta do que a pobre galinha correndo pelo pátio. E como indústria é coisa que não acontece no quintal de casa, ou no playground do prédio, a distância entre produção e consumo final é mais do que suficiente para que aí se interponham todos os filtros. Desde os mitos nutricionais que só mais tarde serão desmentidos discretamente pelo Globo Repórter até a reconceitualização surrealista que transforma animais de abate em bichinhos felizes. A indústria cuida que nós, adultos urbanos, não nos traumatizemos com o lado feio do processo. Somos hoje mais protegidos do que as crianças de 30 ou 70 anos atrás, sistematicamente alienados e desresponsabilizados pelo que escolhemos comer. Um crescimento às avessas, rumo a uma inconseqüência – a respeito de si, dos outros seres e do planeta – sem precedentes.
Meu pai foi tratado como adulto precocemente, enquanto que eu tive a sorte de ter respeitado o meu próprio tempo. Mas só para descobrir, já crescido, que parte do que faz hoje a grande engrenagem girar trabalha para que todos continuemos crianças sem traumas e inconseqüentes, num mundo cheio de diminutivos.