Este é um blog sobre direitos animais e veganismo, abordados a partir da experiência de quem não sabia quase nada a respeito até o dia em que.

domingo, 10 de agosto de 2008

Perder e encontrar

Ainda no embalo da discussão que aconteceu no Biscoito Fino e a Massa, fiquei com vontade de falar mais sobre um ponto que abordei muito de passagem por lá.

Nos debates sobre direitos animais, boa parte das reações dos que não concordam com essa idéia tem uma coisa em comum que sempre me impressiona bastante: o medo da perda da humanidade. De várias maneiras aparece nas entrelinhas – às vezes explicitamente fora delas – a certeza de que, se olhar para o animal não-humano de outra forma que não a do especismo vigente, o animal humano vai fazer com que o bicho deixe de ser bicho e o homem deixe de ser homem. Tipo a quebra de um encantamento, que devolve todos ao caos. Nesse espaço subitamente tornado confuso pelo rompimento da fronteira tranqüilizadora entre homens e bichos, é o medo então que passa a comandar o leme e a definir o rumo das coisas.
Fico pensando nisso porque a reação apaixonada, que é coisa por si só muito interessante, tem sempre nesse debate um tom de ultraje. E eu gosto muito da força dessa palavra, e acho muito potente a situação de quem se sente ultrajado. Tem algo de quebra, de violação no ato de ultrajar. Embora o momento do ultraje seja de passividade, de perceber e sentir a violação cometida, só os deuses sabem o que pode vir depois disso. Do ultrajado dá para esperar qualquer coisa.
Então, diante de fronteiras que se diluem e parecem levar para o ralo a humanidade do debatedor reativo, o medo e o ultraje surgem como componentes-chave dos argumentos que, a essa altura, provavelmente serão ditos alguns decibéis acima do normal. Ou escritos em caixa-alta.

Me contou a querida Naza, que tem a experiência de colocar o debate sobre direitos animais para seus alunos na universidade, sobre a aluna que reagiu de maneira mais extremada à exibição de Terráqueos e depois se tornou vegana. É um bom exemplo de potência (nesse caso, transformadora) advinda da situação de ultraje. A mesma mobilização que dá energia para elevar os decibéis também serve de combustível para detonar um processo de reflexão onde não caberá mais o medo da fronteira explodida, do ralo engolidor de humanidade.

Como se isso tudo já não fosse bonito o suficiente, para mim o que há de mais bacana é o que se segue. Parecido com a transição entre as distintas realidades do sono e da vigília, o momento de encarar sem medo a possibilidade da própria humanidade escoar pelo ralo nebuloso é o momento mesmo de redescobrir essa humanidade. Ela não só continua lá, intacta, mas além disso agora se encontra também fortalecida e revigorada pelo processo todo. Afinal quem passou pelo medo, o ultraje, a raiva e a reflexão não foi nada e nem ninguém senão o próprio homem. É assim que a assombração da perda se desvanece sem o estardalhaço com que começou. Esse é o ponto em que toda histeria cessa. A vida pode finalmente começar a se desenhar em outros termos, pois agora há um autor que acaba de se reencontrar.

Então sigo interessado e impressionado conforme as experiências confirmam: o debate inflamado nem sempre é vazio. Às vezes uma contra-argumentação raivosa é apenas destrutiva, mas, ironicamente, há brechas para uma reflexão mais ponderada que só conseguem ser abertas pela força da raiva. Um paradoxo. Tipicamente humano.

[ a cena que ilustra o post mostra a personagem-título de Medéia, interpretada por Maria Callas no filme de Pasolini sobre o qual já falei aqui. Medéia é o exemplo-mor do que um ultraje é capaz de causar. Jasão que o diga. ]

6 comentários:

Anônimo disse...

Olá Cléber,


Vou discordar parcialmente do seu diagnóstico sobre as razões que levaram a estas reações ultrajadas durante esta discussão.

Se estivéssemos defendendo a abolição do uso do chuchu com gérmen de trigo, com certeza a discussão teria sido muito menos inflamada. O poder do estômago de interferir no funcionamento do cérebro é algo que ainda não deixa de me surpreender.

Mas gostei de ver a sua atuação. Em nenhum momento você perdeu a compostura.

Na verdade, todo defensor dos direitos animais deveria propor uma única questão: que característica moralmente relevante TODOS os seres humanos possuem para serem respeitados que nenhum outro animal possui? O resto é tangencial.


Abraços veganos,

Cláudio Godoy

Cleber disse...

Muito bem colocado, Cláudio.

Gostei do debate – que acabou ocorrendo num lugar e de uma maneira totalmente inesperados por mim –, mesmo que o espaço tenha sido pequeno diante de tanta coisa que foi levantada. Antes que esse resto tangencial que você tão bem aponta seja elucidado como tal, ele é uma verdadeira mata fechada, e às vezes mal dá pra sair do lugar. A menor picada que se abra acaba sendo muito valiosa.

Eu torço para que algum leitor do Biscoito tenha pelo menos ficado desconfiado de que o estômago tá protagonizando um filme que não foi feito pra ele...

Abraço também!

Andréa disse...

Cheguei tarde nessa discussao, (mas voltei la no Idelber pra dar o meu pitaquinho), mas adorei sua compostura, tambem. Voce disse tudo e eu nao teria tanta paciencia. A blogosfera precisa de mais veganos como voce.

Cleber disse...

Andréa, foi tudo tão corrido (e, nesse caso, tão intenso) que, embora eu tenha lembrado de você, não consegui te avisar a tempo.
Teu pitaco tá muito bom, e o Idelber voltou a se manifestar. Não sei se vou me aguentar sem dar uma palavrinha a mais... Fico o tempo todo com a sensação de que a discussão está de saída bem comprometida por conta de um primeiro entendimento equivocado, pai do ultraje de que falei, e aí não sei se adianta insistir.

Enfim...

Anônimo disse...

Querido Cleber, eu passei para deixar um agradecimento pela sua belíssima participação no debate. Sei muito bem que quando se questiona ou se ataca algo que nos é muito caro -- como é o caso deste tema para você --, a tendência é que apresentemos uma reação indignada ou violenta. Com infinita elegância e paciência, você apresentou seu ponto de vista com argumentos, num ambiente que não era necessariamente o mais hospitaleiro. Acredite, estou refletindo sobre tudo o que você disse -- e teremos a oportunidade de voltar a debater o assunto num post futuro, que pretendo fazer, sobre pitbulls. Sei que talvez a minha posição tenha sido algo surpreendente para você, mas de qualquer forma, com o tempo, iremos avançando nessa conversa. Claro que você deve ficar à vontade para voltar e escrever mais. O problema é que naquele ponto, realmente, a atenção do leitor já claudica. Um abraço do seu aliado. Idelber

(ps: e a discussão serviu para você conhecesse a encantadora Andréa, que também provavelmente se decepcionou um pouco comigo, não é? Ou vocês já se conheciam?)

Cleber disse...

Querido Idelber, obrigadíssimo pela visita e pela delicadeza e atenção das suas palavras. Fico muito feliz que o assunto não se tenha esgotado para você, e tenho certeza que a cada nova discussão que se abra poderemos todos avançar mais e mais.

A Andréa conheci aqui no blog, e ela é mesmo uma presença sempre encantadora. Vai ser muito bom nos encontrarmos todos novamente no Biscoito.

Grande abraço!