Conforme os minutos passavam e o assunto não saía do lugar, fui me sentindo mais e mais deslocado daquilo tudo, da abordagem, da excitação com o fato, do vocabulário utilizado. Com a menção a "currículo" percebi que havia algo realmente fora do tom. William Waack conversava com o correspondente Rodrigo Alvarez e ambos diziam ter consultado o currículo do piloto. Dezenove mil horas de voo. Foi piloto de caças. Foi presidente da Associação dos Pilotos de Linhas Aéreas (ohhhhhhh...). Tem uma empresa especializada em segurança aérea. Enfim, o homem certo na situação certa. E então veio o comentário de que a empresa do piloto, com sede na Califórnia, terra do "empreendorismo", agora iria certamente "bombar".
Hein?
Se a busca da raiz do alegado heroísmo do sujeito no seu currículo já parecera estranha o suficiente, a previsão de sucesso empresarial como decorrência do pouso bem-sucedido coroou de vez o que percebi como uma bizarra manobra: as qualidades do herói foram deslocadas da esfera da moral para a da performance.
Mas agora me diz: o que a palavra "herói" evoca em você?
Aqui cá comigo, as primeiras associações são: "coragem", "risco" e, sobretudo, "sacrifício". Mestre Houaiss me ajuda, acrescentando "tenacidade", "abnegação", "magnanimidade" e "indivíduo [...] que arrisca a vida em benefício de outrem". E, por último, "indivíduo [...] notabilizado por suas realizações/que desperta enorme admiração; ídolo".
Acho que não erro e mesmo faço apenas chover no molhado ao entender a sociedade estadunidense como mais idólatra que a brasileira. O elogio permanente ao indivíduo "que faz" é uma característica bastante evidente por lá, então a associação entre "ídolo" e "herói" é pelo menos previsível em se tratando dos Estados Unidos. E tem também o impacto emocional daquilo que acontece no quintal da sua casa, colorindo adjetivos e mobilizando admirações. Quero dizer que não me espantaria se em vez do Jornal da Globo estivesse assistindo à CNN. Só para comparar, olha o que diz, por exemplo, o Le Monde:
"A foto do piloto, Chesley Sullenberger, de 57 anos, foi divulgada repetidamente nas redes de televisão americanas, e o prefeito de Nova Iorque louvou seu heroísmo e seu profissionalismo. [...] O presidente americano George W. Bush por sua vez louvou 'a habilidade e o heroísmo da tripulação'. Segundo o New York Daily News, que deu a manchete 'Os heróis do Hudson' no seu site, o homem é um veterano da Força Aérea americana."
Ou seja, o jornal reporta a atribuição de heroísmo pela população local, mas não fica endossando essa atribuição. O que me parece muitíssimo mais adequado do que a longa matéria do Jornal da Globo, que nada mais fez a não ser ecoar sem qualquer filtragem a mídia estadunidense, como se o pouso de emergência tivesse ocorrido no Tietê, com Lili Marinho a bordo... Acompanhei com atenção o Jornal Hoje, da mesma Globo, do dia seguinte só pra confirmar idêntica postura editorial. Com nenhum morto e quatro atendimentos hospitalares somente por hipotermia e não pelo pouso em si, foi o "heroísmo competente" do piloto que pautou as duas matérias (aqui e aqui), novamente ultrapassando, juntas, os 6 min. Se é assim com a principal rede de televisão do país, tenho certeza que esse episódio vai virar um "case de sucesso" nas palestras motivacionais sobre administração e gerenciamento por aí. Alguém tem uma máscara de oxigênio extra, por favor?
Devo estar velho, mais chato e ranzinza do que de costume, mas um piloto altamente treinado em situações de emergência que acaba por colocar em prática todo o seu treinamento não me faz levantar as sobrancelhas. O cara foi craque, foi fera, foi braço, sim. É o primeiro pouso de emergência na água em 50 anos sem nenhuma vítima. Que bom que o treinamento, que a especialização do piloto pôde dar conta da situação de alto risco e salvar 155 vidas. Técnica apurada, perícia, sangue frio. Uhu. Mas sou do tempo em que alta performance e currículo adequado não eram os ingredientes básicos daquilo que reconhecemos como heroísmo, então só consigo achar tudo isso muito fora de lugar. Deslocam-se as qualidades do herói, desloco-me para um estado em suspensão, assistindo a tudo sem conseguir acreditar que é essa a língua que está sendo falada. Ando também mais sensível, pois a situação em Gaza é o cenário dos últimos tempos do qual não consigo me afastar, e a partir de onde olho para as coisas cotidianas e só me sobra o espanto ao assistir a bizarrices como as do Jornal da Globo. Que, por sinal, nessa mesma edição dedicou 3 min 1 s à matéria que cobriu o bombardeio israelense às instalações da ONU, de um hospital e dos locais onde trabalhava a imprensa em Gaza. Menos da metade do tempo utilizado para cobrir o pouso forçado no Hudson. E de um jornalismo tão vagabundo que esses 3 min não valem 10 s de informação consistente.
[ a imagem é a estampa da camiseta "Cher Guevara"; só pra constar: apesar de velho, chato e ranzinza, eu morri de rir outro dia quando topei por acaso com ela na Internet ]