Este é um blog sobre direitos animais e veganismo, abordados a partir da experiência de quem não sabia quase nada a respeito até o dia em que.

domingo, 18 de janeiro de 2009

Um herói contemporâneo

Assisti incrédulo à matéria do Jornal da Globo do último dia 15 sobre o pouso de emergência do airbus da US Airways no rio Hudson, em Nova Iorque. Siga o link e confira o vídeo: são exatos 6 min 42 s, dos quais os últimos 2 min e quase 20 s são dedicados integralmente a destacar o heroísmo do piloto. Esse tempo foi recheado dos seguintes termos: "competência", "habilidade do profissional", "currículo", "homem ideal", "performance", "alta performance", "empresa", "empreendorismo", entre outros. "Heroico" e "herói" aparecem quatro vezes ao longo da matéria.

Conforme os minutos passavam e o assunto não saía do lugar, fui me sentindo mais e mais deslocado daquilo tudo, da abordagem, da excitação com o fato, do vocabulário utilizado. Com a menção a "currículo" percebi que havia algo realmente fora do tom. William Waack conversava com o correspondente Rodrigo Alvarez e ambos diziam ter consultado o currículo do piloto. Dezenove mil horas de voo. Foi piloto de caças. Foi presidente da Associação dos Pilotos de Linhas Aéreas (ohhhhhhh...). Tem uma empresa especializada em segurança aérea. Enfim, o homem certo na situação certa. E então veio o comentário de que a empresa do piloto, com sede na Califórnia, terra do "empreendorismo", agora iria certamente "bombar".

Hein?

Se a busca da raiz do alegado heroísmo do sujeito no seu currículo já parecera estranha o suficiente, a previsão de sucesso empresarial como decorrência do pouso bem-sucedido coroou de vez o que percebi como uma bizarra manobra: as qualidades do herói foram deslocadas da esfera da moral para a da performance.

Mas agora me diz: o que a palavra "herói" evoca em você?

Aqui cá comigo, as primeiras associações são: "coragem", "risco" e, sobretudo, "sacrifício". Mestre Houaiss me ajuda, acrescentando "tenacidade", "abnegação", "magnanimidade" e "indivíduo [...] que arrisca a vida em benefício de outrem". E, por último, "indivíduo [...] notabilizado por suas realizações/que desperta enorme admiração; ídolo".

Acho que não erro e mesmo faço apenas chover no molhado ao entender a sociedade estadunidense como mais idólatra que a brasileira. O elogio permanente ao indivíduo "que faz" é uma característica bastante evidente por lá, então a associação entre "ídolo" e "herói" é pelo menos previsível em se tratando dos Estados Unidos. E tem também o impacto emocional daquilo que acontece no quintal da sua casa, colorindo adjetivos e mobilizando admirações. Quero dizer que não me espantaria se em vez do Jornal da Globo estivesse assistindo à CNN. Só para comparar, olha o que diz, por exemplo, o Le Monde:

"A foto do piloto, Chesley Sullenberger, de 57 anos, foi divulgada repetidamente nas redes de televisão americanas, e o prefeito de Nova Iorque louvou seu heroísmo e seu profissionalismo. [...] O presidente americano George W. Bush por sua vez louvou 'a habilidade e o heroísmo da tripulação'. Segundo o New York Daily News, que deu a manchete 'Os heróis do Hudson' no seu site, o homem é um veterano da Força Aérea americana."

Ou seja, o jornal reporta a atribuição de heroísmo pela população local, mas não fica endossando essa atribuição. O que me parece muitíssimo mais adequado do que a longa matéria do Jornal da Globo, que nada mais fez a não ser ecoar sem qualquer filtragem a mídia estadunidense, como se o pouso de emergência tivesse ocorrido no Tietê, com Lili Marinho a bordo... Acompanhei com atenção o Jornal Hoje, da mesma Globo, do dia seguinte só pra confirmar idêntica postura editorial. Com nenhum morto e quatro atendimentos hospitalares somente por hipotermia e não pelo pouso em si, foi o "heroísmo competente" do piloto que pautou as duas matérias (aqui e aqui), novamente ultrapassando, juntas, os 6 min. Se é assim com a principal rede de televisão do país, tenho certeza que esse episódio vai virar um "case de sucesso" nas palestras motivacionais sobre administração e gerenciamento por aí. Alguém tem uma máscara de oxigênio extra, por favor?

Devo estar velho, mais chato e ranzinza do que de costume, mas um piloto altamente treinado em situações de emergência que acaba por colocar em prática todo o seu treinamento não me faz levantar as sobrancelhas. O cara foi craque, foi fera, foi braço, sim. É o primeiro pouso de emergência na água em 50 anos sem nenhuma vítima. Que bom que o treinamento, que a especialização do piloto pôde dar conta da situação de alto risco e salvar 155 vidas. Técnica apurada, perícia, sangue frio. Uhu. Mas sou do tempo em que alta performance e currículo adequado não eram os ingredientes básicos daquilo que reconhecemos como heroísmo, então só consigo achar tudo isso muito fora de lugar. Deslocam-se as qualidades do herói, desloco-me para um estado em suspensão, assistindo a tudo sem conseguir acreditar que é essa a língua que está sendo falada. Ando também mais sensível, pois a situação em Gaza é o cenário dos últimos tempos do qual não consigo me afastar, e a partir de onde olho para as coisas cotidianas e só me sobra o espanto ao assistir a bizarrices como as do Jornal da Globo. Que, por sinal, nessa mesma edição dedicou 3 min 1 s à matéria que cobriu o bombardeio israelense às instalações da ONU, de um hospital e dos locais onde trabalhava a imprensa em Gaza. Menos da metade do tempo utilizado para cobrir o pouso forçado no Hudson. E de um jornalismo tão vagabundo que esses 3 min não valem 10 s de informação consistente.


[ a imagem é a estampa da camiseta "Cher Guevara"; só pra constar: apesar de velho, chato e ranzinza, eu morri de rir outro dia quando topei por acaso com ela na Internet ]

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

Boicote a Israel

Vários blogs já repercutiram o artigo de Naomi Klein no The Nation, publicado no último dia 7, em que ela defende a ideia de boicote aos produtos israelenses como forma de pressão mundial contra os crimes do Estado de Israel. Ali fiquei sabendo da existência do Global BDS Movement – Boycott, Divestment and Sanctions for Palestine, movimento que desde 2005 congrega várias organizações palestinas na divulgação e defesa de ações de boicote, desinvestimento e sanções contra Israel.

Naomi Klein afirma que Israel precisa tornar-se um alvo da repreensão mundial, a exemplo do que aconteceu com a África do Sul dos tempos do apartheid, e não imagino melhor colocação do que essa no que diz respeito à condenação moral que desejamos expressar como indivíduos que compartilham a mesma indignação. Condenações legais efetivas, via ONU – Corte Internacional de Justiça, parecem ainda um desejo protelado para o dia em que o arranjo de forças mundiais esteja completamente redesenhado. Enquanto isso, podemos nos juntar aos que já estão em plena campanha, boicotando produtos (comerciais, culturais, etc.) israelenses e divulgando essa ideia. Um exemplo tocante vem "de dentro": Klein cita a carta assinada por cerca de 500 cidadãos israelenses judeus (entre os quais dúzias de artistas e acadêmicos conhecidos) e destinada aos embaixadores estrangeiros em Israel, que pede ao mundo que adote imediatamente medidas restritivas e sanções, explicitamente fazendo um paralelo com a luta pelo fim do apartheid sul-africano. Quanto ao boicote comercial, não sei exatamente quais produtos chegam às lojas brasileiras, mas um dado importante é o seguinte: para driblar o boicote, algumas empresas não colocam o made in Israel no que produzem. Um drible que pode ser desarmado, pois todo código de barras inicia pela identificação do país de origem através dos três primeiros algarismos. O código de Israel é 729.

Os veganos estamos tão acostumados a debulhar informações nos rótulos que prestar atenção a mais esse detalhe é moleza. É bom também que você avise ao comerciante que está desistindo do produto tal por causa da origem israelense. Então anote: 729, e passe a informação adiante.

domingo, 11 de janeiro de 2009

As blindagens

Li no RS Urgente sobre o excelente artigo escrito pelo jornalista inglês Robert Fisk para o The Independent, que depois descobri, pelo O Biscoito Fino e a Massa, estar traduzido no blog Amálgama. Recomendo a leitura: Fisk fala das comparações utilizadas como argumento pró-Israel, recorrentes pelo mundo afora e caracteristicamente estúpidas e parciais (do tipo imagine-se como israelense sob foguetes Qassam, mas não ouse imaginar-se como palestino sob o pesado bombardeio de Israel), e termina o texto narrando um debate do qual participou em que o oposto disso, a recusa da possibilidade de comparação, toma as vezes de argumento. Reproduzo abaixo:

"Meu momento preferido aconteceu quando eu disse que jornalistas têm de ter lado, e que o lado dos jornalistas têm de ser o lado dos que mais sofrem. Se me mandassem cobrir o tráfico de escravos no século 18, eu jamais daria destaque, no que escrevesse, à opinião do capitão do navio mercador de escravos. Se me mandassem cobrir a libertação num campo de concentração nazista, eu não entrevistaria o porta-voz da SS. Nesse ponto, um jornalista do Jewish Telegraph em Praga 'argumentou' que 'o exército israelense não é Hitler'. Claro que não. Eu não disse que é."

A atuação historicamente criminosa do Estado de Israel sobre a população palestina suscita merecidamente várias comparações, da África do Sul do apartheid à Alemanha nazista, ainda que Gaza não seja nem Soweto nem o Gueto de Varsóvia. O sofrimento aparece onde surge a agressão, a opressão, a dor, a morte. A constatação da existência do sofrimento deve ser buscada na vítima, e nunca na intenção ou no discurso do agressor. Ou no seu uniforme, na língua que fala, na religião que professa, na sua circunstância histórica. Responder à denúncia da violência através da lógica do agressor é só dar continuidade à agressão cometida. Os partidários da política de ocupação e extermínio do Estado de Israel tratam de desqualificar qualquer comparação com outros agressores históricos pela blindagem dos fatos dentro da sua lógica "nós somos – sempre – apenas as vítimas". Por acaso Barak e Ohlmert são nazistas? Evidente que não: logo, não há lugar para as bombas de fósforo branco se não na categoria "autodefesa". Qualquer outra consideração está de saída condenada a ser ofensiva e vergonhosa prova de antissemitismo. E jamais são trazidos à cena, como se nunca houvessem existido, os cidadãos israelenses judeus que são contra a ação do seu governo (essa brava e tão admirável gente).

Comparações podem e devem ser feitas e esmiuçadas, sem parcialidade e sem blindagem, até que se esgotem por inapropriadas ou se revelem pontos de apoio consistentes para que compreendamos o que ainda não foi compreendido. Mal comparar ou não permitir comparar são as duas faces da mesma moeda de negação dos fatos, que o artigo de Fisk tão bem elucida.

Não há como olhar para qualquer desses massacres deliberados, friamente arquitetados, sem fazer uma comparação com o holocausto diário que os humanos inflingimos aos animais. Olho para Gaza e lembro dos aviários, dos abatedouros, das fazendas de pele, do confinamento das linhas de produção da indústria de exploração animal. Aqui só se ofende com a comparação quem estabelece a diferença entre espécies como a blindagem adequada para escapar dessa discussão. É uma blindagem de fato eficaz, basta olharmos para os números do contador que o blog mantém logo ali acima à esquerda. Eficaz, mas nem por isso livre de buracos de incoerência e inconsistência lógica. Sem hesitação dizemos que os habitantes de Gaza estão "enjaulados como animais", numa comparação óbvia e inquestionável, mas não nos permitimos entender que por sua vez os animais enjaulados sofrem, no mínimo, como sofre hoje a população de Gaza.

Sim, os palestinos de Gaza não são iguais a animais. Mas eu não disse que são.

[ a primeira foto mostra os "alojamentos" no campo nazista de Birkenau; a segunda mostra um aviário. ]

sexta-feira, 9 de janeiro de 2009

Todos ao Biscoito!

Já disse aqui que O Biscoito Fino e a Massa é o meu blog favorito, e volto a falar dele para recomendá-lo ainda mais nestes dias terríveis em que a criminalidade do Estado de Israel nos desafia a encontrar as palavras certas para o aparentemente inominável. Mas todo crime tem nome, sim, e Idelber Avelar está fazendo um trabalho extraordinário de opinião, informação e compilação sobre os horrores por que passa a população palestina, fundamental para que atravessemos a barreira espessa criada e mantida, mais ou menos intencionalmente, pela grande imprensa em sua quase totalidade.
A Internet mostra o que tem de melhor em momentos assim, e o Biscoito entra em ação de maneira irretocavelmente admirável. Muitíssimo obrigado, Idelber.

[ O Biscoito Fino e a Massa está concorrendo a melhor blog de política no Best Blogs Brazil 2008, e você pode votar aqui. Eu já votei. (Foto: Gaza, REUTERS/Yannis Behrakis) ]