Descobri outro dia no site de Gary Francione que estão disponíveis versões em português dos vídeos dele. Na realidade são slides de texto e imagem em forma de vídeo. O primeiro, Teoria dos direitos animais, dá uma geral e introduz o assunto. Não há sequer trilha sonora e as imagens são poucas, e me chamou a atenção a falta de imagens "chocantes". Há cenas de animais mortos ou feridos, mas uma foto de jornal ilustrando alguma matéria sobre produção pecuária corre o risco de ser mais perturbadora. Gostei. Imediatamente me deu vontade de apresentar o vídeo pra todo mundo. Hoje enviei um e-mail para os amigos queridos dando o link até o vídeo e explicando do que se tratava, e explicitamente avisando de que ninguém seria submetido a um "show de horrores" caso se dispusesse a assistir. Quer dizer: eu sou absolutamente a favor do show de horrores. Assisti a Terráqueos e sei o quanto a crueza de todas aquelas cenas ajudou na minha mobilização imediata com o assunto (mas falo sobre isso em seguida). E acho importante salientar que qualquer diferença dessa natureza na abordagem do tema há de se dar num nível bastante superficial. Uma imagem ou duzentos e cinqüenta? Com ou sem sangue? Isso tudo é irrelevante uma vez que se tenha realmente começado a enfrentar a questão, mas, antes que esse momento aconteça, a abordagem "menos chocante" dos direitos animais me parece uma boa alternativa para alcançar aquelas pessoas que sabem o tanto de horror que está necessariamente implicado nesse tema. As pessoas que, exatamente por causa disso, não querem mais saber. Ou saber "mais" do que já sabem. O dado explícito e chocante das imagens (ou da descrição textual pormenorizada) acaba servindo de justificativa para o afastamento total do debate, e falo aqui principalmente do debate consigo mesmo. É a hora de dar stop no player, a hora de fechar o livro, a hora de amassar o panfleto. "Vamos mudar de assunto?" Uma pena, pois quando alguém se recusa a pensar sobre isso nesses termos está se recusando a debater o assunto de qualquer maneira, pois não há como alienar esses termos da discussão. Seria mais ou menos como tentar discutir o Holocausto sem passar pelo terror dos campos de concentração, ou debater os problemas por que passa a população afro-descendente do Brasil deixando de lado tudo o que aconteceu antes de 13 de maio de 1888."Quem precisa saber das condições enfrentadas nos navios negreiros, por exemplo? Vamos mudar de assunto?"
Não. Nossa consciência nos diz: precisamos de todo detalhe sobre os navios negreiros e as senzalas, toda descrição macabra sobre os guetos e os campos. A fatura desse enfrentamento deve ser debitada na conta de todos nós. Esse assunto é nosso, gostemos ou não. Por isso me sinto bastante afortunado pela oportunidade de ter assistido a Terráqueos. Por ter sido confrontado com o que é também da minha conta. Foi importante ter conseguido não desviar o olho uma vez sequer, e eu quis fazer isso várias vezes. O dedo coçava pra apertar o stop no controle remoto. Mas tratei de agüentar no osso, porque aquilo me dizia respeito. Não olhar para aquelas cenas seria proceder a mais uma violência contra as vítimas que aparecem no filme. Ignorar seu sofrimento seria matá-las uma vez mais. Por fim ficou claro que meu estômago embrulhado, minha culpa, meu horror não eram nada, rigorosamente n-a-d-a diante do que cada um daqueles seres passou. Num jogo de forças em que trezentas emoções conflitantes brigam dentro de você, o que acabou prevalecendo foi um sentimento básico de acatar a responsabilidade por aquelas cenas, e esse foi o ponto exato que detonou toda a transformação posterior.
Aí, pra colocar a imagem no post anterior a este fui obrigado a rever o filme justamente na parte em que eu mais quis fugir dele. A pior cena, a mais terrível pra mim. Tanto, que não conseguia sequer falar sobre ela. Eu só conseguia dizer "tem uma parte...". Fiquei assim por semanas, meses até. Que nada: um ano e quatro meses. Só consegui verbalizar a frase "a cena da raposa" quando comentei com o Felipe sobre a ilustração que iria colocar no post. Como para ele tudo ocorreu de maneira muito parecida, até então éramos dois imbecis falando sobre esse momento particular do filme:
— É que naquela hora.
— Pois é.
— Não dá nem pra falar, né?
— É.
— Pois é.
O blog não tem como característica o uso dessas imagens terríveis. Mas no último post eu achei que precisava colocar a raposa. E tive de ir buscá-la no filme. Pra achar um frame adequado, revi e revi a cena que tanto me doera. Doeu de novo, é claro, mas dessa vez percebi uma relação diferente com a dor, e que agora me parece difícil colocar em palavras. Um outro entendimento, talvez, a partir da sensação de que, num mundo especista e cheio de contradições a respeito, o enfrentamento dessa dor não é apenas previsível. Ele é, realmente, necessário.
[ para ir direto aos vídeos no site de Gary Francione, clique aqui (e veja se você não fica com vontade de também mandar o link para os seus amigos...); a ilustração do post foi retirada da cena menos explícita de A lista de Schindler, filme de Steven Spielberg de 1993 ]