Depois que você passa a incluir nas suas preocupações os direitos animais e trata de viver de acordo com isso, não faltam situações de confronto com o padrão especista vigente, especialmente perturbadoras nos momentos mais simplinhos e cotidianos. É no miúdo que o enraizamento profundo do especismo se deixa ver com mais eloqüência: tão sólido e natural para uns quanto absurdo e insustentável para outros. Uma situação de tensão típica é juntar à mesma mesa onívoros e veganos, e o tanto de discussão proveitosa ou hostilidade aberta que pode resultar desse encontro vai depender de civilidades e humores. Se for para apostar na convivência das diferenças, cabe ao vegano, em tal situação, guardar o discurso mais contundente para o momento em que ele se oportunize – caso se oportunize – no encaminhamento natural da conversa. Que pode até se dar no meio do próprio jantar, por que não? Por isso cabe ao onívoro ter cuidado com o que comenta ou questiona e, sobretudo, como faz o comentário ou o questionamento. A pergunta "você não come carne?" não precisa ser respondida com a descrição pormenorizada do processo de abate num matadouro, mas se após ser informado das convicções do outro o onívoro conduzir a prosa rumo à desqualificação dessas convicções, aí ele merece sim alguma resposta que abra uns belos parênteses bem no meio do seu bife. O momento de refeição/prazer de uma pessoa não é, em si mesmo, mais sagrado que qualquer momento de outra pessoa. As circunstâncias devem dar o tom e a medida para todos. Mas o especismo continua sendo o paradigma da maioria, então é comum ver onívoros, cheios da razão impensada que o pertencimento à maioria proporciona, se dizerem muito incomodados de ter o seu prazer estragado por algum comentário radical e desagradável, não importam as circunstâncias.Fiquei pensando nisso porque hoje, no meio do almoço, com a TV ligada no Jornal Hoje, assisti à seguinte matéria:
"Duzentas e setenta e cinco mil focas devem ser mortas na temporada de caça no Canadá. Para diminuir a crueldade, o governo determinou que os animais só podem ser abatidos a tiros ou com golpes na cabeça e pediu aos caçadores que, antes de retirar a pele das focas, se certifiquem de que elas estão mortas.
Os ecologistas protestaram. Segundo eles, as novas regras não vão impedir a matança bárbara dos animais."
Como são as coisas: para ter a sua refeição estragada nem é preciso ser onívoro, e muito menos ter ao lado um defensor dos direitos animais radical e desagradável. A realidade sozinha já se encarrega disso.
[ o trecho da matéria foi reproduzido na íntegra, e pode ser visto aqui; a ilustração do post foi retirada do documentário Terráqueos (Earthlings), e mostra uma raposa viva momentos após ter tido sua pele inteira arrancada a sangue frio, em uma fazenda de peles chinesa; as focas no Canadá não sofrem horrores menores: aqui você pode assinar uma carta ao ministro canadense do Comércio Internacional para que acabe com esse absurdo ]

