Este é um blog sobre direitos animais e veganismo, abordados a partir da experiência de quem não sabia quase nada a respeito até o dia em que.

sábado, 29 de março de 2008

Parênteses

Depois que você passa a incluir nas suas preocupações os direitos animais e trata de viver de acordo com isso, não faltam situações de confronto com o padrão especista vigente, especialmente perturbadoras nos momentos mais simplinhos e cotidianos. É no miúdo que o enraizamento profundo do especismo se deixa ver com mais eloqüência: tão sólido e natural para uns quanto absurdo e insustentável para outros. Uma situação de tensão típica é juntar à mesma mesa onívoros e veganos, e o tanto de discussão proveitosa ou hostilidade aberta que pode resultar desse encontro vai depender de civilidades e humores. Se for para apostar na convivência das diferenças, cabe ao vegano, em tal situação, guardar o discurso mais contundente para o momento em que ele se oportunize – caso se oportunize – no encaminhamento natural da conversa. Que pode até se dar no meio do próprio jantar, por que não? Por isso cabe ao onívoro ter cuidado com o que comenta ou questiona e, sobretudo, como faz o comentário ou o questionamento. A pergunta "você não come carne?" não precisa ser respondida com a descrição pormenorizada do processo de abate num matadouro, mas se após ser informado das convicções do outro o onívoro conduzir a prosa rumo à desqualificação dessas convicções, aí ele merece sim alguma resposta que abra uns belos parênteses bem no meio do seu bife. O momento de refeição/prazer de uma pessoa não é, em si mesmo, mais sagrado que qualquer momento de outra pessoa. As circunstâncias devem dar o tom e a medida para todos. Mas o especismo continua sendo o paradigma da maioria, então é comum ver onívoros, cheios da razão impensada que o pertencimento à maioria proporciona, se dizerem muito incomodados de ter o seu prazer estragado por algum comentário radical e desagradável, não importam as circunstâncias.

Fiquei pensando nisso porque hoje, no meio do almoço, com a TV ligada no Jornal Hoje, assisti à seguinte matéria:

"Duzentas e setenta e cinco mil focas devem ser mortas na temporada de caça no Canadá. Para diminuir a crueldade, o governo determinou que os animais só podem ser abatidos a tiros ou com golpes na cabeça e pediu aos caçadores que, antes de retirar a pele das focas, se certifiquem de que elas estão mortas.
Os ecologistas protestaram. Segundo eles, as novas regras não vão impedir a matança bárbara dos animais."

Como são as coisas: para ter a sua refeição estragada nem é preciso ser onívoro, e muito menos ter ao lado um defensor dos direitos animais radical e desagradável. A realidade sozinha já se encarrega disso.

[ o trecho da matéria foi reproduzido na íntegra, e pode ser visto aqui; a ilustração do post foi retirada do documentário Terráqueos (Earthlings), e mostra uma raposa viva momentos após ter tido sua pele inteira arrancada a sangue frio, em uma fazenda de peles chinesa; as focas no Canadá não sofrem horrores menores: aqui você pode assinar uma carta ao ministro canadense do Comércio Internacional para que acabe com esse absurdo ]

quinta-feira, 20 de março de 2008

Das comemorações

Não bastasse a notícia recente de que a caça esportiva foi proibida no Rio Grande Grande do Sul pelo TRF, trazida pela EcoAgência, deu hoje na Folha Online: o Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) proibiu o procedimento de corte de orelhas e cordas vocais em cachorros e remoção de unhas em gatos. A medida, publicada ontem no Diário Oficial da União, também torna não-recomendado o corte de cauda em cachorros.

Gente!

Diz a matéria: " 'A conchectomia [corte da orelha] e caudectomia [corte da cauda] são tradições que alguém criou por entender que os animais ficam mais bonitos nessa condição, mas temos que respeitar o direito deles', afirmou Benedito Fortes de Arruda, presidente do CFMV."

Yes!

Manifestando-se contrário à resolução, Délio Mendes, criador de cães doberman em Brasília, diz que nas competições da raça os animais com orelhas cortadas levam vantagem por seguirem a orientação da federação internacional. Hein? Ele completa, candidamente: "É para satisfazer o ego do dono? É, mas a vaidade tem benefício para o cachorro, que vai poder comer ração de boa qualidade pelo investimento que o dono faz nele."

Eu é que não queria ser amigo desse Délio: deve ser o tipo de sujeito que só te oferece uma cerveja se você satisfizer a vaidade dele:
— Ô, Delinho, como você tá bonito hoje, rapaz!... sim, quero sim, com pouco colarinho, por favor. Lindão!

[ sobre a proibição da caça esportiva, veja a notícia aqui; a matéria da Folha Online você pode ler aqui ]

sexta-feira, 7 de março de 2008

O inferno dos outros não é outro inferno

Felipe e eu estávamos anteontem no final da manhã esperando ônibus numa grande avenida da cidade. O calor, a poluição e o ruído excessivo tinham me colocado rapidamente em profundo desconforto físico. Lamentava não ter um carro e resolver a tarefa simples de comprar material de ferragem sem precisar ficar ali à espera. Esse material era para finalizar um trabalho doméstico que estava por trás do principal motivo do meu desconforto: poucos dias antes, para instalar prateleiras em casa, tive de fazer exatos 24 furos numa parede que se mostrou mais resistente do que prometia. Foram alguns bons minutos ininterruptos com a furadeira em modo "impacto". Quando acabei, meu ouvido direito zumbia e apitava como se recém-saído de um show de rock, daqueles em que você fica muito perto de alguma caixa acústica. Nada que uma boa noite de sono não resolva, pensei. Mas o dia seguinte começou com o meu primeiro lampejo de consciência já detectando: o zumbido-apito ainda estava lá, e tão forte como antes. Well...
A Internet me esclareceu o termo médico: tinnitus. Pode ser causado por doença ou por trauma. A partir de 85 decibéis os ruídos começam a causar algum estrago à audição. Uma furadeira pode chegar a 105 decibéis. A extensão do dano vai depender da sensibilidade do indivíduo, da intensidade do ruído, do tempo de exposição a ele e também do quanto o ouvido já foi afetado em ocasiões anteriores. O tempo necessário à recuperação aumenta a cada novo trauma. Às vezes, o tamanho do trauma ou a sua repetição tornam o tinnitus permanente. Uns 17% da população mundial têm de conviver com um ruído de algum tipo que está lá, dentro da cabeça, e do qual não se pode escapar. Não há como saber se o tinnitus vai sumir ou não a não ser esperando pra ver. Pode durar dias, mas, pelo que li, em geral deve desaparecer em até 24 horas em 90% dos casos, chegando até 48 horas os outros 10%.

Meu primeiro dia pós-trauma foi um inferno de assombrações me dizendo que estava condenado àquele incômodo para o resto da vida. Quando fecharam as 24 horas eu comecei a ter a impressão de que alguma diferença estava ocorrendo conforme eu protegia ou não o ouvido de qualquer ruído. Apostei nisso e o vedei o quanto pude com algodão, mas arrasado pela desconfiança de que a impressão talvez não passasse mesmo de apenas uma impressão. Enfim, foi só do segundo para o terceiro dia que tive certeza: o ouvido estava, aos poucos, se recuperando.

Esperando por aquele ônibus, agora muito sensível às agressões acústicas causadas pelo trânsito de uma cidade grande, eu pensava na falta de um carro e na minha recente e perigosa aproximação à situação de condenado eterno a um desconforto do qual não se pode escapar. Já imaginou? Nunca mais a sensação de poder descansar no silêncio, ou seja, nunca mais descansar. Para sempre sem saída, como um enterrado vivo. Um horror.
O ônibus demorava. Calor, poluição, ruído. A falta de um carro, e eu tão desconfortável e justificado por quase ter me estropiado para o resto da vida que, ao lembrar que por outro lado isso significava também um carro a menos nas ruas, pensei: "Dane-se!". Naquele momento de imersão autocentrada, o que havia em mim de generosidade e solidariedade estava reduzido a quase zero. Até que saí do meu transe umbilical quando ouvi o Felipe dizendo "Oh!". Me virei e vi: descendo a avenida, um cavalo com uma carroça presa às suas costas lutava para não cair, as patas fugindo ao controle. Muito magro e visivelmente fraco, as ferraduras eram armadilhas no asfalto escorregadio, com todo o peso da carroça o empurrando ladeira abaixo. O sinal fechou e não foi fácil parar a tempo. Triste cena urbana porto-alegrense no início do século 21: um homem e uma mulher numa carroça, na avenida movimentadíssima, puxada por um cavalo fraco, provavelmente doente e desnutrido, à beira de tombar de exaustão, de dificuldade, de impossibilidade de prosseguir.

Imediatamente me conectei com o peso nas costas. O ângulo de visão restringido. O caminhar escorregadio e a relação direta com o solo definitivamente comprometida pelo metal estranho ao corpo. Metal também na boca, onde se sentem as tensões das rédeas puxadas. A fraqueza tomando conta dos membros. O ruído excessivo e constante do trânsito, o cheiro agressivo da poluição. Todos os sentidos ali, presentes num organismo vivo e complexo, e todos eles condenados a um estresse constante. Não se trata de um trauma temporário, portanto não há o que esperar. O amanhã será a repetição agoniante do hoje. Enquanto forem mantidos como regra seu status de propriedade, a crueldade talvez ignorante dos que se pretendem seus donos e a indiferença de todos nós outros, é certo que o cavalo será usado até acabar, como um objeto, e até acabar será esse inferno. Fosse um ser livre, ele teria autonomia para preencher a vida de experiências trazidas por sentidos também livres. Mas não é o caso. Quanto a mim, devidamente arrancado da minha bolha de autocentramento pela cena triste e injustificável, olhei e vi minhas assombrações recentes plenamente consumadas na vida miserável daquele cavalo. Para sempre sem saída.

O horror. O horror. O horror.